quinta-feira, 16 de abril de 2020

ACABOU CHORARE: SEM TRIO, SEM GUITARRA, SEM MORAES.

Socorro Pitombo


Saudade! Esse é o sentimento que ocupa o coração de cada um de nós. O violão silenciou, aquele mesmo instrumento cujos acordes nos deixavam arrepiados, encantados com o som do que se convencionou chamar de “frevo trieletrizado”, que invadia a praça Castro Alves nos dias de Carnaval.

Uma querida amiga me diz ter saudade de acompanhar Moraes Moreira descendo a ladeira de São Bento lotada de gente e sem medo. Verdade, nessa hora vem a recordação de tudo, da mocidade, dos tempos idos, quando o simples andar pelas ruas não oferecia o menor perigo.

Perdemos Moraes Moreira, é fato. Mas a sua música permanecerá viva nas dezenas de discos que gravou ao longo de uma história de sucesso. Foram 50 anos de carreira desse baiano de Ituaçu que com a sua música conseguia levantar o chão da praça... para a alegria dos foliões.

Cantor, compositor, músico e um dos fundadores do grupo MPB Novos Baianos, Moraes Moreira nos deixa o legado da sua música, que levou alegria por esse Brasil afora, em shows e outras apresentações durante a carreira solo. Foi o primeiro cantor de trio elétrico, o trio de Dodô e Osmar, e são dessa época as lembranças que guardo comigo dos carnavais de Salvador.

A praça Castro Alves era o point. Íamos chegando no finzinho da tarde e escolhendo a melhor localização das barracas – naquele tempo não havia camarotes – que pudessem acomodar o grupo de oito a dez pessoas. Uns de Feira, outros de Salvador, não importa, estávamos unidos num só propósito, nos divertir nos quatro dias de festa.

Ali, a gente se encontrava com Nei Matogrosso, Caetano Veloso, e outros tantos que se tornariam ícones da música brasileira. Sem tietagem, vale dizer. Tudo muito natural. Mesmo porque eles estavam no começo da carreira.

A terça-feira, último dia da festa, era especial, pelo tão esperado encontro dos trios. E a gente lá, aguardando, brincando, esbanjando animação e alegria. Afinal, o Carnaval ia chegando ao fim e era preciso aproveitar todos os momentos. A madrugada raiando e a gente lá, esperando o grand finale.

O dia já claro e os trios iam chegando. Impossível descrever a emoção daquele momento. De pé nas mesas das barracas para melhor apreciar o espetáculo, acompanhávamos em êxtase o duelo das guitarras, cada um dos músicos fazendo a sua melhor performance. E lá estava Moraes Moreira, como ele mais gostava, no trio elétrico, com Armandinho, arrebatando multidões

Mas já era quarta-feira e a luz da manhã inundava toda a praça, anunciando que um novo dia estava começando. Era chegada a hora de voltar para a realidade da vida. E esta mesma realidade nos diz apenas: Acabou Chorare.

Socorro Pitombo, jornalista

Publicado originalmente no Blog da Feira

quarta-feira, 1 de abril de 2020

A CULTURA DO LUXO: MODA E BELEZA A SERVIÇO DA HUMANIDADE



A cultura do luxo praticamente parou nos últimos meses. Potências mundiais invadidas pelo coronavírus tiveram suas atividades produtivas e comerciais inteiramente comprometidas, quando a preocupação essencial passou a ser a sobrevivência. Nesse cenário desolador que mobiliza todo o planeta, grandes marcas de luxo, concentradas na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia, mudaram suas estratégias e passaram a se concentrar em como empreender medidas de solidariedade.

Dentre as estratégias, destacam-se as empreendidas por marcas como Louis Vuitton, Prada e Bvlgari. O presidente do grupo LVMH, Bernard Arnault, determinou que três das suas fábricas de perfume produzam álcool em gel ao invés dos habituais cosméticos e demais fragrâncias para marcas do conglomerado. O gel hidroalcoólico será doado a hospitais franceses. A empresa também doou US$ 2,2 milhões à Sociedade da Cruz Vermelha da China. A Prada, por sua vez, decidiu doar seis UTIs para três hospitais em Milão, na Itália, um dos países mais afetados pelo coronavírus. Os hospitais beneficiados são o Vittore Buzzi, o Sacco e o San Raffaele. Já a Bvlgari, fez uma doação ao hospital Lazzaro Spallanzani em Roma, que permite a compra de um sistema de aquisição de imagens microscópicas de última geração, uma máquina fundamental para apoiar uma pesquisa que visa o isolamento do vírus, projetando prevenção e tratamento.

Diante deste cenário, vislumbramos o quanto esse mercado do luxo está enraizado na nossa cultura e o quanto qualquer tipo de alteração no curso produtivo e comercial impacta este mesmo mercado, como tantos outros. De certo, ainda que o luxo esteja associado a uma inutilidade, num momento de crise planetária, esse mercado mostra como pode ser útil. Além do mais, sabemos que o luxo está associado à ideia de eternidade e de sonho, vetores cada vez mais intensificados em tempos de incertezas.

Nesse universo, o campo da moda ocupa um espaço extremamente importante. Marcas e conglomerados do setor do vestuário e acessórios constituem esse território singular em que certos modos de ser e de estar no mundo são adotados, estimulados e cobiçados pelos indivíduos. Yves Saint Laurent, Dior, Prada, Burberry, Chanel, Gucci, Hermès e Louis Vuitton são alguns dos ícones desse universo que mobiliza cifras na casa dos milhões... Só para termos uma ideia dos montantes, a marca francesa Louis Vuitton, até meados do ano passado (julho de 2019) era considerada a marca de luxo mais valiosa do mundo (valor de US$ 47,2 bilhões), segundo dados do ranking BrandZ, divulgados pela WPP e pela Kantar. Outras duas marcas também francesas ocupam o segundo e terceiro lugares neste mesmo ranking: a Chanel (valor de US$ 37 bilhões)  e a Hermès (US$ 31 bilhões) .

Vislumbramos, assim, o papel da moda e da beleza no universo do luxo. Para termos uma ideia de como se desenvolve a cadeia produtiva desse setor, é importante assinalar que a indústria têxtil e de vestimentas vem cada vez mais procurando centros em que se encontra uma mão de obra mais acessível e, por isso mesmo, assistimos a um crescimento exponencial da produção asiática e o descenso da hegemonia europeia. De todo modo, os principais grupos responsáveis por bens pessoais de luxo concentram-se, ainda, no ocidente. Há um predomínio das marcas italianas e francesas.

Ainda assim, o que mais chama atenção é o fato de que há uma deslocalização dos produtos impulsionada pela globalização e existe, consequentemente, um hiato entre o lugar de origem dos produtos e a representação simbólica a que nos remetem; “os objetos circulam sem que o peso identitário perturbe o seu movimento”, observa o sociólogo Renato Ortiz. No campo do luxo e da moda isso fica ainda mais evidente, pois, quase sempre, a identidade das marcas não coincide com sua geografia de origem; elas pertencem ao espaço da modernidade-mundo. E por isso mesmo um estilista como Yamamoto vai afirmar que “não há nenhuma nacionalidade em minhas roupas. Elas não são nem japonesas, nem francesas, nem americanas. Minhas roupas não pertencem à nenhuma nação”. Tal aspecto relativiza exponencialmente a questão identitária relacionada ao consumo do luxo, particularmente, e ao consumo de forma mais ampla.

Inegavelmente, embora desterritorializados, os bens de luxo estão associados a alguns valores simbólicos que lhes confere esse DNA de luxo. Dentre eles, talvez o mais importante seja isso que Ortiz identifica como “(...) transubstanciação simbólica que transfere o valor de assinatura pessoal do criador ao objeto em questão”. É o que comumente no universo da moda identificamos como estilo, uma marca individual, intransferível...

Além da assinatura, do estilo do design-criador, o luxo – cuja origem etimológica vem do termo latim luxus, que significa ostentação - , também estabelece relação com tudo aquilo que está no horizonte do sonho, da eternidade e da raridade. Além disso, invariavelmente, associa-se ao bom gosto, à elegância e à beleza. Todos esses valores estão fortemente enraizados à galáxia da moda, embora a eternidade e a raridade não estejam, necessariamente, vinculados aos modismos e a própria dinâmica de renovação constante tão própria ao sistema da moda, como já bem evidenciou Gilles Lipovetsky.

Ainda assim, cabe reconhecer o fato de que, sobretudo na alta costura e nas grandes marcas da moda, como Chanel, Hermès e Louis Vuitton (só para citar aquelas que movimentam as maiores cifras no mercado), a eternidade e a raridade de suas modelagens, tecidos e texturas têm sido fatores essenciais do sucesso e da perenidade das mesmas. Os casacos de tweed da Chanel, a bolsa Kelly da Hermès e a bolsa Speedy Louis Vuitton se instituem numa espécie de “(...) atemporalidade inscrita no corpo de uma realização única”.

A democratização do luxo na contemporaneidade cresce aos nossos olhos e há aqui um papel fundamental da mídia na propagação desses bens de consumo. Assistimos a uma consagração e mesmo hipermidiatização dos criadores, dos designers. Os ‘belos objetos’ são disseminados em campanhas publicitárias que invadem a televisão e, sobretudo, as redes sociais. Atingidas fortemente pela onda do coronavírus, inúmeras marcas buscam na Internet e suas plataformas, uma alternativa para um consumo - ainda que restrito -, que promova bem-estar e ative nossos desejos em tempos de isolamento social.

Mas o que mais impressiona é perceber que o luxo tem relação, sobretudo, com o espírito de dispêndio, humano, demasiadamente humano, e que, portanto, não é algo característico da cultura ocidental, por exemplo, ou mesmo de um momento histórico específico. O luxo sempre nos acompanhou; é um fenômeno da cultura, “uma atitude mental que se pode tomar por uma característica do humano-social afirmando seu poder de transcendência, sua não-animalidade”. O importante é que os bens de luxo ofereçam a possibilidade de experiências únicas, em que cada um de nós possa se sentir transformado, tendo sido afetado de uma maneira tão íntima e tão intensa que depois daquela experiência, jamais seremos os mesmos.

Assim, resta ao universo da moda e do luxo, agora, uma vez mais nos mostrar como é possível encontrar beleza e solidariedade em tempos de isolamento social.


Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.