domingo, 6 de abril de 2014

OCASIÕES DE FICAR CALADO



Dia desses encontrei um amigo após algum tempo sem nos ver. Beijos afetuosos, abraços, troca de palavras carinhosas, enfim essas que acontecem em reencontros entre pessoas que se gostam. Até aí tudo bem. Na despedida, veio a frase desavisada, absolutamente dispensável para o momento: _ Dá um beijo em... A resposta me deixou zonza: _ Isso é meio difícil; estamos separados. Por isso sei perfeitamente do que Fernando Sabino trata nesse excelente texto sobre gafes. 

_ Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?

_ Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?

Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:

_ Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...

E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:

_ Terrível, não acha?

Mas ele não pensa assim:

_ Não acho não: sou o atual marido dela.

A consciência de que a gafe em geral se compõe de duas partes distintas. Ficar sempre na primeira, jamais tentar consertar. Ao contrário da Loteria Federal, não insista, desista! Eis o que eu, empedernido praticante, tenho a aconselhar aos meus companheiros de infortúnio. A gafe é vertiginosa e se faz anteceder de uma espécie de aviso, antecipa-se na sensação de que caminhamos no ar, como num desenho animado:

_ Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?

_ Não posso, sou a dona da casa.

Ou esta outra, mais comum ainda:

_ Com aquela mulher ali eu não dormia nem de graça.

_ Aquela mulher ali é a minha esposa.

Se o infeliz acrescentar que neste caso dormia sim, não estará apenas caindo de quatro: estará se precipitando no abismo da mais imperdoável inconveniência, que vem a ser a repetição literal de uma velha anedota.

São gafes tradicionais, decorrentes em geral das relações de parentesco ou dos encontros de circunstância, a que os mais insensatos como eu raramente escapam. Não há como resistir ao poder magnético dos assuntos traiçoeiros, que vão espalhando armadilhas a cada passo, e nos levam sempre a falar em corda justamente na casa do enforcado.

Se sabemos que a gafe é irreversível, por que tentamos teimosamente remendá-la, afundando-nos cada vez mais?

É que ela nem ao menos é sincera. Fôssemos autênticos e verazes na convivência, a gafe se desarmaria ao peso de sua própria legitimidade. E deixaria de ser gafe.

Foi essa, pelo menos, a solução encontrada por um amigo meu, vítima também dessa maldita sina, e que ontem me dizia ter-se conformado, passando a praticá-la deliberadamente.

_ Você é parente dele? Que horror!

_ Morreu? Meus parabéns.

_ Não sei como você, tão simpática, pode ter um marido tão chato.

_ Fui cair logo ao seu lado neste banquete, mas veja só que azar o meu.

_ Aliás, pelo que eu soube, a senhora não é tão velha quanto parece.

_ Não aguentei ler até o fim. Ah, foi o senhor que escreveu? E ainda tem coragem de confessar?

Com isso ele passou a ser considerado homem do mais fino espírito – excêntrico, desconcertante, é verdade – mas de esmerada educação. Apesar de tudo, outro dia recebeu o troco que lhe era devido, funcionando desta vez como receptor de uma gafe, ao dizer a uma jovem que está escrevendo um romance: a história de um mau-caráter. E ela, inocentemente:

_ Autobiográfico?

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