sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

E ASSIM SE PASSARAM TRÊS DÉCADAS



Por Claudio Rodrigues*

Quando desembarquei no Terminal Rodoviário de Itabuna, no dia 30 de dezembro de 1992, acompanhado da amiga/irmã e futura comadre Madalena de Jesus, estávamos iniciando uma aventura na “Terra do Sem Fim”, sob o comando do mestre José Carlos Teixeira. 

O desafio era modernizar a Comunicação Social do governo do então prefeito Geraldo Simões. Meu projeto pessoal era ficar seis meses na cidade-mãe de Amado Jorge.

Logo na chegada, descobri que havia uma colônia feirense enraizada em Itabuna composta pelo professor Tustão Andrade, o design Paulo Fumaça e o saudoso gerente-comercial do Correio da Bahia para a região Sul, Robson Nascimento. Descobri que feirense e mato são quase iguais, pois brota em todo canto.

Eis que o tempo foi passando, o ciclo de amigos no governo, nos veículos de comunicação e fora desses meios foram aumentando e a gente se apegando a essa terra. A cada 15 dias pegava a rodovia BR-101 rumo a Feira, a fim de encontrar a então amada namorada.

Depois de fazer algumas contas, chegamos à conclusão de que era melhor juntar as escovas e constituir família. Pensem numa escolha acertada!

Posso assegurar que essa água mágica do Cachoeira (fornecida pela Emasa), o vento que sopra na gente e a areia do chão de Itabuna são como visgo da jaca e a nódoa de caju, colam na gente e não saem de jeito algum. 

Itabuna me possibilitou constituir uma bela família. Mas não foi só isso. Essa terra encantadora também me deu alguns amigos-irmãos, a exemplo de Luiz Conceição e Daniel Thame (hoje meus compadres), Ramiro e Ricardo Aquino, Devinho Samuel, Lula Viana, Jackson Primo, Ricardinho Ribeiro, Reinaldo Jovita, Josiel e Norma Nunes, Fernand Milcent, Heitor Abijaude e César Sena.

Além desses irmãos, vieram uma legião de amigos aos quis amo e prezo. A exemplo do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, que nesse mês completaria 110 anos de nascimento, posso afirmar que sou um catingueiro feliz. 

Se eu nascesse de novo, queria ser o mesmo Cláudio. Se eu nascesse de novo e pudesse escolher, mais do que eu sou não queria ser. Eu queria nascer em Feira de Santana, a Terra de Lucas.  Eu queria ser filho de dona Peu, neto de Adelino e Silvina, marido de Maria Martha, pai de Héctor, Heitor e Antônio Neto, e genro de Inês Borges e Antônio Mendes. 

Quando eu tivesse com meus vinte e poucos anos, eu queria desembarcar novamente em Itabuna, me apaixonar por essa cidade e sua gente. E, se eu nascesse de novo e pudesse escolher, escolheria viver tudo isso novamente.

*Jornalista, assessor de comunicação da Emasa

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

TUDO EVOCA SACRALIDADE


Por Jailton Batista

Uma das mais singelas capelas do Brasil está incrustada numa gruta em Bom Jesus da Lapa, no meio oeste da Bahia. Quem ali adentra, não há como não ser impactado, pois tudo evoca sacralidade. Do teto, esculpido pela ação silenciosa do tempo, descem pináculos invertidos de estalactites como se fossem candelabros. Em frente ao altar mor, no centro da capela, um deles verte gotas d’água que um crente diria que seriam lágrimas de Cristo que caem ritmadamente como uma nota musical. 

Esse milagre da natureza poderia ser bem aproveitado numa pia batismal ou em outra cerimônia sacramental para purificar tantas almas pecadoras que ali vão beber na fonte de Deus. Fica aí a sugestão. No interior da caverna sacra há pequenos labirintos onde fiéis ou curiosos percorrem diminuídos pela aura transcende  do lugar. 

Lá fora, a missa campal ao pé da montanha e ao lado da embocadura do templo de pedra, um padre conduz a cerimônia principal sob o fervor dos cânticos entoados por jovens de um coral bem afinado, colorindo a liturgia de uma musicalidade que nos faz imaginar que estamos na porta do céu sendo saudados por anjos com seus alaúdes e cítaras numa festa de conversão.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

LIVRO E DESFILE COLOCAM MODA E CRÍTICA EM DEBATE


Como avaliar o campo da moda, seus produtos e fluxos? Esta foi a indagação inicial que deflagrou a reflexão sobre a crítica de moda e a realização do livro Moda e Crítica: Prazer, Julgamento e Avaliação, da jornalista e pesquisadora Renata Pitombo Cidreira. O livro tem o selo da EDUFBA (Editora da Universidade Federal da Bahia) e procura relacionar a paixão pela moda com a exigência de legitimá-la, enquanto campo. O lançamento, em Feira de Santana, acontece, nesta quarta-feira, 16, a partir das 17:30, na Seriguela Petiscaria. 

Na oportunidade, o público também apreciará um pocket desfile, da Dengo Butique, loja de Lara Pitombo de Cristo. Ela retoma a tradição da família no universo do vestuário, procurando atualizar a proposta da loja Dengo Boutique, que foi referência do segmento de loja feminina na cidade de Feira de Santana por muitos anos, sob o comando de seus pais, Socorro Pitombo e Wilson Cristo. Reformulada, a loja procura atingir um público mais jovem e assumir um estilo mais casual. Em parceria, as irmãs procuram oferecer ao público um bom entretenimento e momento de imersão prática e conceitual no campo da moda. 

A autora do livro, Renata Pitombo Cidreira, é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, pela UFBA, com pós-doutorados em Sociologia (Universidade de Paris V – Sorbonne) e Comunicacão e Arte, pela Universidade de Beira Interior (Portugal). Professora da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) e autora dos livros Os Sentidos da Moda (Annablume, 2005) e A Sagração da aparência (EDUFBA, 2011), ela tem se dedicado a destacar o papel da moda na constituição de um novo perfil comportamental, no mundo contemporâneo.


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O RACISMO E O SENSO DE JUSTIÇA SELETIVO

 



Por Dandara Barreto
 
Depois da expulsão da aluna de uma faculdade particular de Feira de Santana, que utilizou suas redes sociais para fazer ataques racistas a pessoas pretas que dividiam os corredores e a sala de aula com ela, publiquei em minhas redes sociais o vídeo da reação dos alunos após anúncio da decisão da instituição, acertadíssima, na minha opinião, mas ela não é absoluta, felizmente, já que vivemos num país democrático. Divergir da atitude da faculdade é super “ok”. O que não dá para levar em consideração, é quando se coloca o racismo no lugar de opinião, pois não é.

Determinados argumentos me chamaram atenção por esta razão: “Foi um erro grosseiro, mas isso é linchamento virtual”; “Será essa a atitude mais correta?”; “Como Cristo agiria?”; “Devemos usar a razão e agir com amor”. Disseram.

Lendo-os, me deparei com a seletividade da nossa indignação e senso de justiça. Primeiro, porque racismo não é apenas um erro e é inconcebível que alguém considere que o tratemos como tal. Racismo é crime. Pedir docilidade, cordialidade, amor e compreensão como reação a algo que mata, é uma atitude injusta e igualmente racista. Para mim, soa como se pessoas negras tivessem que retroceder séculos e aceitar as humilhações como tiveram que fazer diante de seus ancestrais escravizados.

Questionar a atitude de Cristo, caso estivesse ali, é bem pertinente nesta pauta. Perceba que se foi amor ao próximo que Ele pregou, precisamos todos concordar que não há nada que fira mais o maior dos seus mandamentos do que desprezar alguém pela cor da sua pele ou condição social. Jesus era pobre. Pregou para os pobres e quando viu homens mercantilizando a fé no templo, aos gritos, segundo os evangelhos, os chamou de hipócritas. Ele reagiu duramente e deixou a passividade de lado. Uma demonstração claríssima de que, sim, a sociedade pode e deve agir energicamente, ainda que tenha amarras cristãs. 

Parece que ainda não está claro para todos e precisarei ser repetitiva aqui: racismo é crime! Quando alguém subtrai um bem nosso, nós clamamos por justiça. Queremos ver quem nos roubou atrás das grades, sem compaixão alguma, afinal, como é possível falar com amor com ou sobre quem arranca de nós aquilo que suamos tanto para conseguir? Eu nem vou mencionar nossa sede de justiça quando há um assassinato na história. Sabemos muito bem que sentimento é este e nem sempre nos orgulhamos deles. 

O racismo subtrai a dignidade e a vida de pessoas pretas há centenas de anos. Não é razoável que a sociedade encare como um mero erro, o fato de alguém estar incomodado em conviver com pretos ao seu lado e se manifestar publicamente sobre isso, sem pudor algum. É crime. Meu senso de justiça não pode ser seletivo, ou então, eu estarei sendo hipócrita, tipo de gente que irrita até Jesus.

Pessoas pretas, as leis, os veículos de comunicação, falam didaticamente, todos os dias sobre o quão letal é o crime de racismo. Se alguém não ouve, é necessário elevar o tom da voz. 

A resposta dada a este fato, em Feira de Santana, é a única resposta possível, se não, a gente continua tendo, todos os dias episódios como este.

Eu, mulher branca, que não coaduno com o pacto narcísico da branquitude, escrevo este texto para os iguais a mim. Quem sabe a cor da minha pele faça ecoar em seus ouvidos o que é dito pela comunidade negra à exaustão e de uma vez por todas se entenda comunidade negra à exaustão e de uma vez por todas se entenda que o racismo é crime. 

*Dandara Barreto é jornalista

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

“POEMA”, SENTIMENTOS EM FORMA DE VERSOS


Impossível ouvir Ney Matogrosso cantar “Poema” uma vez só. E quando descobrimos a autoria da música e toda história que a cerca, tudo fica ainda mais especial. É um poema, que Cazuza, aos 17 anos, escreveu para a sua avó Maria José, por quem tinha verdadeira adoração. Os versos são simples, mas com uma carga de sentimentos impressionante. Musicado por Frejat, o poema que ficou guardado em uma caixinha durante 23 anos é uma declaração de amor.


Eu hoje tive um pesadelo

E levantei atento, a tempo

Eu acordei com medo

E procurei no escuro

Alguém com o seu carinho

E lembrei de um tempo


Porque o passado me traz uma lembrança

Do tempo que eu era criança

E o medo era motivo de choro

Desculpa pra um abraço ou um consolo


Hoje eu acordei com medo

Mas não chorei, nem reclamei abrigo

Do escuro, eu via o infinito                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

Sem presente, passado ou futuro

Senti um abraço forte, já não era medo

Era uma coisa sua que ficou em mim

E que não tem fim


De repente, a gente vê que perdeu

Ou está perdendo alguma coisa

Morna e ingênua que vai ficando no caminho

Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado

Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás.




segunda-feira, 11 de julho de 2022

QUANDO A DOR VIRA SAUDADE E O AMOR PREVALECE

 
Maíra em momento carinhoso com o pai, Anchieta Nery 

Escrevi esse texto logo após a perda do meu pai e a sensação ao relê-lo foi a mesma, uma mistura de alegria, saudade, tristeza. Porque ter vivido com ele e não poder mais compartilhar da sua presença causa tanta coisa, menos indiferença. Meu pai era pura amizade, pura solidariedade, nunca sucumbiu às vaidades que cegam e corrompem até os melhores. Decidi sempre fazer algo no mês de seu aniversário e esse ano como estamos vivendo uma crise sem tamanho resolvi contar com a ajuda dos amigos e familiares e arrecadar cestas básicas que forem possíveis. Então se alguém puder e quiser doar qualquer quantia segue o pix: nerymaira4@gmail.com  (Maíra Nery)

Há um ano e nove meses meu pai partiu - rumo ao mistério. Fiquei tentando juntar o que restava e sobreviver em meio ao caos que restou. Parecia que não tinha mais como piorar, perdi o pai, o meu amigo para sempre. Ele não fora viajar, nem ido ao bar da esquina. De repente e aos poucos, como quem pega no sono, ele tinha morrido, palavra que mais parece um palavrão. Eu não sabia como lidar com a Maíra que tinha ficado. Meus instintos me pediam para não desistir, sobretudo em honra à memória de meu pai, que sempre me ensinou a continuar, a ir, mesmo quando não me restasse mais força. Aprendi com ele a ter fé na vida, a atravessá-la com coragem, determinação e dignidade, mesmo em face do maior obstáculo.    

Lembro como se fosse hoje nosso último diálogo, quando não sabíamos que não travaríamos mais nenhum outro, dentre outras coisas, ele me pediu que cortasse o cordão umbilical com ele, dito isso na véspera da sua partida fez até parecer uma despedida amorosa de um pai sabendo que tem que partir e então pede à filha amada que continue, que seja firme e forte e no final com a voz mais doce possível, quase como música diz em voz firme e tenra - Eu te amo, minha filha.  

Os dias que se sucederam à sua morte foram quase a minha própria morte. Comia o mínimo possível, emagreci muito, fiquei frágil, egoísta e passava o dia migrando da tela do celular para o computador. A dor de enfrentar a morte de alguém muito amado é a dor mais doída que pode existir. Nós não lidamos bem com a finitude. 

Nesse processo de luto aprendi também que não posso controlar tudo, as coisas acontecerão alheias às minhas próprias vontades  e nem sempre me sentirei justiçada e tudo bem. A vida vai continuar, as contas precisam ser pagas, os filhos precisam ser cuidados. E dia a dia vamos também descobrindo novas formas de nos relacionar com aqueles que se foram. Meu pai vive em mim, o amor que cultivamos, os diálogos que travamos, os conselhos que ele me deu, as cervejadas compartilhadas não deixaram de existir só porque não poderão serem mais vividas. Viver na memória de alguém também é viver e uma belíssima forma de viver. Hoje seu olhar doce, sua altivez, sua força, sua compaixão, sua solidariedade estarão em mim, nos meus filhos e nos filhos dos meus filhos e assim ele, um pouco dele, sempre estará vivo. 

Quando menos esperei meu coração foi se acalmando, a dor foi cessando. Aquele passarinho teimoso cantarola, eu volto aos poucos a sorrir. O amigo aparece, o filho faz um afago, e eu novamente relembro seus conselhos - Minha filha se conforme, dói menos. Eu fui aceitando, fui seguindo, florindo novamente.   

Muitas coisas mudaram, eu mudei, a vida mudou para mim, obviamente a saudade não, ela hoje é minha companheira, minha camarada e já sabemos lidar uma com a outra, mesmo naqueles dias que parece que ela resolve me espancar. Bem, hoje parece que dobrei de tamanho, mesmo mutilada, carrego meu pai em mim e poucas coisas me assustam. Se o dia é ruim, se perco algo valioso relembro do meu pai, o vejo sorrindo, lembrando-me que é só um dia ruim mesmo, talvez um amor desleal, um amigo injusto, um chefe ruim, um bug do sistema e vai passar, eu vou levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Tudo sempre passa. 

Eu desejo sinceramente que todos possam viver a plenitude de um amor e amizade tão sinceros quanto o que compartilhei com o meu pai e que esse amor exploda em luzes e seja capaz de iluminar qualquer vida, como iluminou a minha, e que tenham belas memórias, que vivam fartamente como ele viveu. E sobretudo que sejam imensamente felizes, mesmo com a dureza da vida, como eu tenho sido, que tenham filhos sorridentes, amigos leais, amores intensos, dias bonitos, sucos gostosos, chocolates quentes.  

Anchieta Nery 

Presente! 

 Maíra Nery é estudante de Letras e filha do jornalista e professor Anchieta Nery

sexta-feira, 17 de junho de 2022

MEDIDA PROVISÓRIA 1888/2022: SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA DESCRENÇA

 



Por Alana Freitas El Fahl

Na última quinta-feira, 21 de abril, dia simbólico na História do Brasil, após mais de dois anos sem ir ao cinema, me permiti o presente vivificante de assistir ao brilhante Medida Provisória. Cinema lotado aqui na minha Feira de Santana, repleta de jovens de todas as idades, inclusive meu filho, sobrinhas e muitos rostos conhecidos e comungantes daquele banquete. Por quase duas horas experimentamos a gloriosa “Suspensão temporária da descrença” cunhada por Coleridge sobre a magia da literatura.

A plateia estava atenta e sedenta por uma boa história e a encontrou. O que começa como uma aparente comédia de costumes evolui para um eletrizante thriller com notas de trama policial e de aventura, mas preservando aquele humor irônico que apreciamos e que desafia nossa reflexão para o ontem e o hoje e nos faz engasgar com a pipoca ou com o papel da Fruitella (feita para fruir a tela) no meu caso

O filme é uma adaptação do livro e peça de teatro do ator e dramaturgo baiano Aldri Anunciação, Namibia, Não (2012), rosto familiar para nós que prestigiamos a Rede Bahia e que agora será visto por milhares, merecendo todos os prêmios. Com direção de Lázaro Ramos (também dirigiu a peça acerca de dez anos) e presença de grande elenco (e elenco grande, inclusive do próprio Aldri, como Ivan, personagem chave na trama) e equipe de mais de 800 pessoas com trabalho direto e indireto. A narrativa retrata uma distopia na qual, em pleno 2021 ou 2022, o governo brasileiro aprova uma medida provisória que decreta que todos os “melaninados” retornem para a África como uma espécie de política de reparação pelos 400 anos de escravidão.

A trama tem por protagonistas um trio, dois primos e a esposa de um deles, o jornalista André, o advogado Antônio e a médica Carolina/Capitu, vividos respectivamente por Seu Jorge, Alfred Enoch e Taís Araújo que emprestam seu corpos e almas aos papeis. Uma família negra que vive em um prédio de brancos, onde o único outro negro é o porteiro. Aqui, vale destacar que o termo protagonista é mesmo explorado com a força de sua etimologia, esses três serão aqueles que primeiro lutam e resistem, os dois desde o princípio e ela, na medida em que toma consciência de seu papel social sufocado sob o jaleco.

Destacamos que os nomes dos três aludem ao século XIX, os abolicionistas negros, o engenheiro André Rebouças, o advogado e poeta Luiz da Gama, ambos jornalistas combativos, e nossas personagens ficcionais A Moreninha e a nossa cigana oblíqua e dissimulada (faz muito sentido na evolução da personagem, de romântica à realista). Ressalte-se que, em paralelo aos protagonistas, todo elenco brilha em cenas de qualquer tamanho, às vezes apenas com um olhar, uma fala, um gesto, um silêncio eloquente ou em uma marcha coletiva.

A trama é muito rica em detalhes e referências que vão se costurando em nossa frente. Acredito que o grande estalo criativo da obra é a reprodução do tempo passado no presente. Cenas coloniais ligadas à geografia da escravidão como a captura violenta (vide Pai contra Mãe de Machado de Assis), a fuga para as matas, o afrobunker em lugar dos quilombos, acontecem na paisagem urbana do Rio de hoje. Bem como cenas do século XX e até de nosso passado bem recente são reproduzidas numa espécie de espelhamento atemporal.

A gramática da Ditadura Militar está toda posta no Ministério da Devolução (Que nome e que ministro!), nos porões, nos arquivos, nas portas fechadas, no discurso dissimulado que faz parecer que um absurdo é uma dádiva, na votação da câmara (“pelo meu país, pela minha família” XX E XXI). Essa dança cronológica enriquece muito o universo distópico e mostra que o surreal coexiste em qualquer tempo. O “como deixamos isso acontecer?” de André é uma marca palimpsestica de que todos esses brasis estão vivos e podem nos surpreender...

Atentem para o momento em que a Medida Provisória é aprovada e o segurança da inspetora Isabel, referência explícita ao nome da Redentora, atuação irretocável de Adriana Esteves, imediatamente prende o seu colega “melaninado”, a cena soa como um eco da famosa fala de Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva na ocasião do AI 5, “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.   E o filme é cheio de guardas da esquina. Cenas assim se reproduzem no filme, muitos e muitos ecos e intertextos gritam em muitos momentos.  

Por falar em espelhamento, uma das cenas mais fortes do filme se dá na morte simultânea de André e Santiago, Pablo Sanábio, braço direito de Isabel que se arrepende por amor a Ivan (desculpem o spoiller) e muda de lado. Cenas de brutalidade que se dão tanto na superfície quanto no afrobunker, guiadas por razões diferentes, mas ambas pautadas no ódio que cega, destrói a razão e gera dor. Outras de força latente é a cena do centro cirúrgico invadido, a luta da namorada de André (Mariana Xavier) tentando ajudar de todas as formas ou banho de André lavando a tinta btanca.

E é nesse afrobunker que coisas lindas também acontecem, Dona Helenita/ Diva como uma espécie de sacerdotisa da emoção, da razão e da ação,  não posso falar mais nada dela para não dar mais spoiller, Berto/Emicida trocando armas por livros, a assembleia liderada pelo ancião numa atuação arrebatadora de Hilton Cobra, a cortina de Capitu com fotografias de pessoas inspiradoras e as aparições rápidas e marcantes de tanta gente iluminadora dessa luta contra o racismo e outras violências (Tia Má, Luana Xavier e cia).

Não posso terminar sem falar que a trilha sonora (Elza Soares, Cartola e cia, quanta Sapiência!), os cenários, a fotografia, o texto, o figurino, esses merecem rios de caracteres, só Dona Izildinha daria uma tese, só poderia ser vivida por Renata Sorrah com aquela roupa, aquele cabelo e aquele discurso (conhecemos muitas por aí) e ainda devo dizer que dá para rir muito em alguns momentos, afinal a Bahia dá um trabalho danado, né não? Até o Japa...Ó paí ó...

Precisamos de arte, precisamos de artistas, precisamos daquele soco catártico, daquele aplauso no final, precisamos de ficção, precisamos dessa “subersiva alegria”. Obrigada, Lázaro e cia, a gente te viu na marcha final (cameo) e esperamos te ver muito em trabalhos assim, onde você vai de mãos dadas com tanta gente linda...Agora, deixe-me ir, preciso andar, rir para não chorar...A marcha é contínua e continua ...

P.S. Os policiais todos aparecem de máscaras, e aí leitor?...

Alana de Oliveira Freitas El Fahl é Professora de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidade Estadual de Feira de Santana


quinta-feira, 16 de junho de 2022

AS LAVADEIRAS DE ALAGOAS E AS PALAVRAS

 

Nesse texto, o escritor Graciliano Ramos faz uma analogia entre o ato de escrever e a prática de lavar roupa. Da mesma forma, o também escritor Rubem Alves defende, em uma belíssima crônica, que escrever e cozinhar são ofícios bem próximos. Já o poeta João Cabral de Melo Neto ensina, com muita propriedade, que ‘escrever é como catar feijão”. Parece simples...

 

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer.

Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.

Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.

Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

(Graciliano Ramos)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

PANTANAL: A FORÇA DA FICÇÃO NO CORAÇÃO DO BRASIL

  


*Por Alana Freitas

Para Michel, meu amor[i]

 

Devo começar dizendo que vi a primeira versão de Pantanal em 1990 e que me lembro de muitas coisas daquela época longínqua, mas devo dizer mais, estou vendo verdadeiramente agora a força dessa história e o caudaloso rio e todos os afluentes que a compõem e devo dizer mais ainda: Ela está conquistando novamente um público cativo e sedento por boas novelas e novos telespectadores que já tinham abandonado a telinha e outros tantos jovens que estão saboreando esse biscoito fino pela primeira vez.

A força da trama reside, sobretudo, no choque de dois mundos. Um marcado pela natureza, o outro pela cultura. Um marcado pelo Pantanal, ambientes abertos e sua exuberância. O outro pelo Rio de Janeiro, seus espaços fechados e sua endogenia. Num vigora um certo código de ética. Noutro, as relações são vazias. E esses dois mundos se encontram e se chocam através do malfadado casamento de Zé Leôncio e Madeleine e no fruto cruzado dessa relação difícil: José Joventino, Jove, símbolo da intersecção desses dois mundos. Filho sempre deslocado onde quer que esteja, aqui ou lá, lá ou aqui. No Rio ele não é o mauricinho esperado, no Pantanal ele não é o peão desejado. Observem o guarda-roupa dele com suas camisetas panfletárias (Maio de 68, universo Rock and Roll e outras mensagens) e gastas, sua voz vacilante e seu olhar perdido magistralmente vivido pelo Jesuíta Barbosa.

Vale lembrar que Jove, apelido herdado como diminutivo do nome do avô, é um dos nomes de Júpiter, o correspondente romano de Zeus, Deus pai para os gregos, e que a trama também circula em torno da figura paterna, sempre problemática e em busca de um ideal. Tadeu, o bastardo, sofre com sua condição de filho reserva, José Lucas de Nada e sua procura, Guta que repele a figura do pai ruim, Muda que quer vingar a morte do dela, e no centro de tudo José Joventino, José Leôncio e Jove, o trio que costura a narrativa.

 E o universo mítico não para por aí, vejamos o reflexo de Caronte em Eugênio, Almir Sater virtuoso,  que protagonizou uma bela cena de viola também de pai para filho, um rito de passagem mágico ou tantas lendas ribeirinhas dos encantados que tanto nos encanta. Observe que é uma novela lenta com cenas longas e muitas paisagens, narrada em um tempo mais contemplativo que da ação propriamente. E vamos seguindo seu fluxo. Os espaços são relevantes na condução da história. As cenas da família do Rio, sempre são antecedidas pela imagem da casa que se apresenta em franca decadência assim como aquele clã que só se relaciona entre si e lutam para manter o nome que já nada diz, tudo muito outonal. No Pantanal, as frentes da casa sempre aparecem também, mas de forma solar, com promessas de primavera.

O Pai Maior, assim chamemos José Joventino, abandona a cultura e se integra na natureza, dando vida à fantástica personagem do Velho do Rio, uma figura incontornável, enigmática, que encarna o arquétipo do Mentor, não há adjetivos para Irandhir e  Osmar Prado em suas atuações. Quando o Véi entra em cena, nós aqui do outro lado da tela, também o reverenciamos e recebemos seus conselhos. Os ecos do conto A terceira margem do rio de Guimarães Rosa são evidentes, aliás, quem foi mais gênio que ele em pintar o metafísico no coração do Brasil. Seu herdeiro José Leôncio, Marcos Palmeira nosso matuto dos bons, se embrutece, mas não muito, a fim de fazer fortuna e deixar para seu sucessor aquele império de terras e gado, mas Jove não quer nada disso, e nem sabe o que quer de verdade e por isso  é questionado, reeducado e meditativo todo o tempo. Três homens do mesmo sangue muito próximos e muito distantes.

E nesse conflito nasce o amor pujante de Jove e Juma Marruá (linda e talentosa Alanis), a “menina só natureza” que desconhece os meandros da cultura e age por instinto (na infância ela e a mãe se cheiravam como os bichos fazem), e os dois vão dando aula um para o outro sobre o seu mundo e construindo um casal improvável na cultura e possível na natureza. Mais uma vez o amor se dá entre natureza e cultura, é sina do pai e do filho amar mulheres de mundos diferentes. As cenas da alfabetização de Juma por Jove são de rara beleza e pureza, assim como ela o ensinando a caçar, além das lições de aprendizagem amorosa que são tanto sensuais quanto ingênuas. Um amor e uma cabana é possível? Veremos sem pressa...

Outro aspecto de destaque nesse remake de Pantanal reescrito por Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa (Pai Maior) é a atualização de alguns discursos como as questões relacionadas à ecologia, ao agronegócio, ao feminismo e afins, mas sem pesar a mão porque se for didático demais cai na panfletagem e acho que o Brasil está gostando e precisando muito é de ver mulher virar onça, velho virar sucuri, casal se amando no rio e moda de viola ao luar. Vale lembrar que a novela presta homenagem ao seu criador em alguns momentos, as camisas de Tadeu trazem o nome Mezenga (Rei do gado) e a avó de José Lucas, é a cafetina Jacuntiga ( Renascer), além do elenco de atores que sempre trabalha em suas tramas que têm por mote o universo rural, o chamado Brasil Profundo.

Antes de acabar essa prosa, devo dizer que as tramas secundárias também nos enredam, quem não está torcendo pela virada de Maria Bruaca, ou para saber do desenredo de Muda, ou apaixonado pela bondade e sabedoria de Filó (Dira Diva) e tantos outros pormenores que tornam a obra grande como os rebanhos de Zé Leôncio...Ara...Já ia me esquecendo de um pormenor dos melhores, Renato Teixeira, dando vida ao personagem vivido por seu filho na primeira fase, cantando a amizade no momento de sua morte, bonito demais e a gente não se cansa de ouvir de novo e de novo, eu tenho um cavalo preto....E como a novela é linda, louvemos a amizade, esse sentimento mais lindo do  mundo...A ficção e os amigos têm me ajudado a sobreviver:


Amizade Sincera (Renato Teixeira)


A amizade sincera

É um santo remédio, é um abrigo seguro

É natural da amizade

O abraço, o aperto de mão, o sorriso

Por isso, se for preciso

Conte comigo, amigo, disponha

Lembre-se sempre que, mesmo modesta

Minha casa será sempre sua

Amigo

Os verdadeiros amigos

Do peito, de fé, os melhores amigos

Não trazem dentro da boca

Palavras fingidas ou falsas histórias

Sabem entender o silêncio

E manter a presença mesmo quando ausentes

Por isso mesmo, apesar de tão raros

Não há nada melhor do que um grande

Amigo, amigo, amigo...

*Alana de Oliveira Freitas El Fahl é Professora de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidade Estadual de Feira de Santana

quinta-feira, 31 de março de 2022

A MERENDEIRA QUE TAMBÉM ALIMENTAVA ALMAS



Se alguém procurasse Maria São Pedro de Souza Estrela no bairro Campo Limpo, certamente não iria encontrar. Mas Bia, aí sim. Não há, por aquelas bandas, quem não conheceu a líder comunitária que acolhia a todos. “Se não puder ajudar, não atrapalhe”, dizia ela, atribuindo a citação aos seus antepassados. 

Sempre estava presente nos eventos das mais diversas áreas, mas era na Cultura que se encontrava. Também pudera, tem um filho cantor (Gilsan do Reggae) e uma filha produtora cultural (Lurdes Santana). Teve ainda mais duas filhas (Claudia, Ana Rita e Sueli). Merendeira de escolas públicas por muitos anos, alimentava também a alma das pessoas que a procuravam.

Bia deixa filhos, netos e bisnetos, além de uma legião de admiradores que conheceram a sua força de mulher preta, que transformou as dificuldades da vida em ensinamentos e amor ao próximo. Viveu até os 93 anos como uma verdadeira estrela, que espalha luz por onde passa. 

A guerreira se foi, mas seu exemplo permanecerá.

Madalena de Jesus é jornalista, escritora e professora de Línguas Portuguesa e Francesa e Literatura

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

SOCORRO PITOMBO, UMA FLOR RARA E NADA BANAL


Na belíssima crônica Escritores e Cozinheiros, que compara as práticas de escrever e cozinhar, Rubem Alves fala da dificuldade de iniciar um texto. “Cada semana que começa é uma angústia, representada pelo vazio de três folhas de papel em branco que me comandam: Escreva aqui uma coisa nova que dê prazer!”. Talvez isso explique a minha dificuldade agora. O meu texto, infelizmente, poderá não dar prazer algum a quem o ler. 

Depois de produzir uma nota meramente informativa, a pedido da família, algo dentro de mim impediu de escrever sequer uma linha sobre a partida da jornalista Socorro Pitombo. Nem a tela do computador, nem as folhas de papel citadas por Rubem Alves me convenceram. A dor de perder o convívio com alguém tão especial ainda predomina sobre todos os sentimentos, inclusive a saudade, que começa a tomar contornos mais profundos a cada dia.

A lembrança da convivência durante quatro décadas com Colinha – assim eu a chamava – não escolhe hora nem lugar para chegar. Acredito que ainda estamos ligadas, de alguma forma. Um livro que lemos, os presentes simbólicos que trocamos, as confidências, os conselhos de ambas as partes, o cuidado compartilhado. Enfim, o amor entre irmãs que não tinham o mesmo sangue – apenas um detalhe, claro.

Foi com ela que descobri o talento da escritora espanhola Rosa Montero que diz: Nossas memórias são eternizadas de acordo com o que vivemos. Eu não tenho a menor dúvida disso, agora mais do que nunca. Noveleira, como eu, fazia comentários brilhantes sobre as obras do segmento repudiadas pelos intelectuais. Como se ela não fosse uma dessas pessoas cujo bom gosto vai dos livros à música e a todos os gêneros da arte.

A jornalista Socorro Pitombo Cristo nos deixa um legado riquíssimo, quando a questão é profissionalismo. Trabalhamos juntas por um bom tempo e essa experiência me fez uma jornalista muito melhor. Não igual a ela, porque essa possibilidade não existe. E com toda a humildade que é característica dos sábios e competentes, tinha em mim a revisora de praticamente todos os seus escritos. Uma responsabilidade grande, mas também um orgulho enorme.

Sempre fomos diferentes, em muitas coisas, mas iguais em outras. Eu não vou conseguir, por exemplo, usar o seu vocabulário sofisticado até para contar uma piada ou me referir a uma situação ou pessoa desagradável. Mas certamente jamais esquecerei seus ensinamentos, para o jornalismo e para a vida. Como o Espelho do conto de Machado de Assis, ela é o reflexo de minha alma e continuará viva em mim e em tudo que eu fizer, como uma flor rara e nada banal.


Madalena de Jesus é jornalista, radialista e professora