quarta-feira, 9 de maio de 2018

SANGUE E MEDULA





Algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras até macias, mas nada atraentes. Era como uma sala de espera, mas ao ar livre, sob um toldo. Ainda bem, pois o tempo estava bem quente. Eu também estava em uma delas, levemente agoniado, como sempre. Quando estou apreensivo, tenho a mania de ficar mexendo a perna direita o tempo todo, algo que poucas pessoas reparam em mim.

Me chamaram. Sentei de frente para uma moça, tinha a pele parda como a minha e um cabelo curto, visivelmente pranchado. Ela vestia um jaleco por cima de uma camisa vermelha. Não reparei no seu nome, já que meu pé começou a se mexer novamente e prestei atenção somente nisto. Ela me fez algumas perguntas, pediu meu documento e tive que soletrar o nome da minha rua, o que já se tornou comum, pois ninguém acerta de primeira aquilo.

Depois ela me direcionou para outra mulher, mas esta não parecia tão solícita. Na verdade estava entediada. Eu não sou nenhum perito ou algo do tipo em expressões faciais, mas se tinha algo que dava para ver na cara dela era o tédio. E eu não sabia exatamente o porquê. A mania da perna voltou de novo, e desta vez fiquei em dúvida se era por conta da presença dela ou da máquina de aferir pressão arterial em meu braço. Já não sou dos mais fortes e todo aquele ar pressionando meu braço não era legal.

Ainda tinha algum tempo, minha ficha era a dezesseis. Tomei um café e comi um pão com manteiga meio amassado, do mesmo jeito dos que levo todos os dias para o trabalho. Não fumei naquele momento. Voltei para o local, mas não me sentei nas cadeiras em baixo do toldo, fui um pouco mais adiante, até um ônibus estacionado. Os adesivos eram em tons de azul, mas estavam desbotados, talvez por conta das constantes viagens.

Entreguei os papeis que a primeira mulher havia preenchido para uma moça de óculos no ônibus. Ela me pôs sentado numa cadeira de aço, como as de bares dos anos noventa, mas sem o nome de alguma cerveja e o glamour que só o ferrugem traz ao amarelo. Depois uma outra, alta e magra como essas modelos que se vê por aí, me levou para uma sala pequena. Fez várias perguntas, mais até do que a primeira. Perguntou até com quantas pessoas eu fodi em um ano. Depois me liberou.

A mulher de óculos me levou para uma cadeira e mais uma apareceu, mas esta era loira e pequena. Parecia que só havia mulheres ali, exceto o motorista, um gordo que estava jogado no banco do motorista. Ela me pôs deitado numa cadeira, estendeu meu braço e limpou com diversos produtos. “Abre e fecha a mão”, me disse. Prendeu tubos em outros tubos e coisas em outras coisas, até que veio com uma agulha tão grossa que parecia uma caneta, mas que doeu menos do que eu imaginei.

Mas então algo me veio à mente: quanto temos que não podemos compartilhar? Não sou um sujeito rico, muito pelo contrário, mas sempre há quem precise mais, quem tenha menos. E isto não é algo que está em nossas mãos, não de maneira direta. Lembrei do tédio que a mulher que aferiu minha pressão estava sentindo. Quantas vezes ela fazia aquilo todos os dias? Mas quantas vezes ela fez o que eu estava fazendo?

Cada vez que eu abria e fechava minha mão eu pensava que, talvez, tudo seja uma questão de consciência e percepção; talvez as pessoas precisem entender que com o pouco se faz muito. Que não é só o dinheiro que vira a mesa de alguém. E eu não tenho como afirmar pelas outras pessoas sentadas sob o toldo, ou pela alta e magra que me perguntou sobre minhas fodas e outras coisas, mas, quando aquela agulha grossa como uma caneta saiu do meu braço, me senti bem melhor do que antes de preencher aquele formulário e soletrar o nome da minha rua.

Hoje pela manhã me tornei doador de sangue e medula.

Alan de Sá,estudante de Jornalismo - 8º semestre