sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

ESCRITORES E COZINHEIROS



Eu conheci o texto de Rubem Alves ainda como estudante do curso de Letras com Francês na UEFS. Mas o fascínio é exatamente o mesmo ainda hoje. Sua escrita é leve, simples, fácil... Se não me engano, foi o professor Assis Freitas, também escritor e jornalista, quem me apresentou “Escritores e Cozinheiros”. Em julho de 2014, mês e ano em que o escritor mineiro deixou a vida terrena, aos 81anos, publiquei esse texto aqui no Tabuleiro da Maria (ilustrado com a mesma foto do autor). E hoje me veio a lembrança dessa verdadeira aula para quem se propõe a escrever com o único objetivo de dar prazer ao leitor. 


Tenho um sonho que, acho, nunca realizarei: gostaria de ter um restaurante. Mais precisamente: gostaria de ser um cozinheiro. As cozinhas são lugares que me fascinam, mágicos: ali se prepara o prazer. Mas para preparar o prazer, o cozinheiro deve ser psicólogo, um adivinho de desejos, conhecedor dos segredos da alma e do corpo. Mas não sei cozinhar. Acho que é por isso que escrevo. Escrevo como quem cozinha. Minha cabeça é uma cozinha. O cozinheiro cozinha pensando no prazer que sua arte irá causar naquele que come. Eu escrevo pensando no prazer que o meu texto poderá produzir naquele que me lê.

A relação entre cozinhar e escrever tem sido frequentemente reconhecida pelos escritores. É a própria etimologia que revela a origem comum de cozinheiros e escritores. Nas suas origens, sabor e saber são a mesma coisa. O verbo latino sapare significa, a um tempo, tanto saber quanto ter sabor. Os mais velhos haverão de se lembrar que, num português que não se fala mais, usava-se dizer de uma comida que ela sabia bem. Saber é experimentar o gosto das coisas: comê-las. O sábio é aquele que
conhece não só com os olhos, mas especialmente com a boca. Quem conhece só com os olhos conhece de longe, pois a visão exige distância; muito de perto a gente não vê nada. Quem conhece com a boca conhece de perto, pois só se pode sentir o gosto daquilo que já está dentro do corpo.

Suspeito que Roland Barthes também tivesse uma secreta inveja dos cozinheiros. Se assim não fosse, como explicar a espantosa revelação com que termina um dos seus mais belos textos, a lição? Confessa que havia chegado para ele o momento do esquecimento de todos os saberes sedimentados pela tradição e que agora o que lhe interessava era “o máximo possível de sabor”. Ele queria escrever como quem cozinha — tomava os cozinheiros como seus mestres. Ele queria ler como quem come uma comida deliciosa.

Mário Quintana também diz do seu sonho de produzir, com a escrita, uma coisa que fosse boa de ser comida e trouxesse deleite ao corpo:

Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...

A ideia de comer me sugere uma associação deliciosa. Pois comer não se aplica só ao que acontece à mesa. Comer se usa também para descrever o que acontece na cama. Comer é fazer amor. O cozinheiro e o amante são movidos pelo mesmo desejo: o prazer do outro. A diferença está em que o amante oferece o seu próprio corpo para ser comido, como objeto de deleite. O escritor, à semelhança dos amantes, também oferece o seu corpo ao outro, como objeto de prazer. Só que sob a forma de palavra. Cada escritura é uma celebração eucarística: Tomai, comei, isto é o meu corpo...

A leitura tem de ser uma experiência de felicidade. Desejo o prazer do meu leitor. E cada leitor, como o sugeriu Barthes, impõe ao escritor uma condição para seu prazer: “O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja”.  É preciso que as palavras façam amor, como o sugeriu André Breton. Por isso que Borges aconselhou aos seus estudantes que eles só deveriam ler os textos que lhes dessem prazer: “Se os textos lhes agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois a leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto a felicidade obrigatória”. Não se pode comer por obrigação. Não se faz amor por obrigação. Não se pode ler por obrigação.

É este o secreto desejo de cada escritor: o prazer do leitor.

Enquanto viajava liguei o rádio do meu carro e ouvi o anúncio de um curso de leitura dinâmica: a leitura sob o domínio da velocidade. Esta é a última coisa que um escritor pode desejar. Pois o prazer exige tempo. Quem está no prazer não deseja que ele chegue ao fim. Comer depressa, para acabar logo? Fazer amor depressa, para acabar logo? O prazer é preguiçoso. Arrasta-se. Demora. Deseja parar para começar de novo. E depois de terminado, espera pela repetição.

Esta é a razão por que eu gostaria de ser cozinheiro. É mais fácil criar felicidade pela comida que pela palavra...  Os pratos de sua especialidade, o cozinheiro os sabe de cor. Já foram testados, provados, gozados. Basta repetir, fazer de novo o que já foi feito. Mas é justamente isto que está proibido ao escritor. O escritor é um cozinheiro que a cada semana tem de inventar um prato novo. Cada semana que começa é uma angústia, representada pelo vazio de três folhas de papel em branco que me comandam: “Escreva aqui uma coisa nova que dê prazer!”. Escrever é um sofrimento. Todo texto prazeroso conta uma mentira. Ele esconde as dores da gestação e do parto. De vez em quando alguém me diz: “Como você escreve fácil!”. Fico feliz. Alguém me confessou o seu prazer no meu texto. Mas sei que esta facilidade só existe para quem lê. O fogo que me queimou ficou na cozinha. Mário Quintana diz que é preciso escrever muitas vezes para que se dê a impressão de que o texto foi escrito pela primeira vez. Sim, para que se dê a impressão...  Porque se o sofrimento do escritor aparece, o seu texto terá o gosto de comida queimada.

Por isso que, a cada semana, sinto uma enorme tentação de parar de escrever. Para sofrer menos. Escrever é um cozinhar em que o cozinheiro se queima sempre.

Mas vale a pena ficar queimado pela alegria no rosto de quem come a comida que se fez.

Rubem Alves

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

SOBRE FUTEBOL E OUTRAS LEMBRANÇAS


Que eu me lembre, nunca estive em um estádio de futebol, nem mesmo para assistir a um daqueles mega shows musicais, quanto mais para ver a bola rolar no gramado. Quando menina não fui estimulada a praticar esportes. Ir ao estádio muito menos, era coisa pra homem, o preconceito falava mais alto. E assim foi pela vida afora.

Herança, com certeza, de um tempo não muito distante em que as mulheres eram proibidas de jogar futebol, ou melhor, de praticar qualquer esporte que fosse contra sua natureza. Acreditava-se então que, ao proibir a sua participação em esportes mais violentos – e o futebol era considerado um deles – estava se preservando o corpo da mulher e até mesmo a sua fertilidade.

Já adulta, atuando como repórter da Sucursal do Jornal da Bahia em Feira de Santana, tinha a obrigação de fazer a cobertura esportiva. Aí entrei em pânico, o que fazer se eu não entendia nada de futebol?  Foi então que os colegas entraram em campo. Os homens, é claro! Eles me ajudavam a compor as matérias. Tudo isso sem pisar no Joia da Princesa.

Lembro como hoje que Zadir Porto me ajudou muitas vezes. Trazia as informações completas sobre o jogo da equipe local contra o time da capital ou de outras cidades vizinhas.  Tinha o jogo de ida e o jogo de volta, e eu sem entender nada.

No jornal, em Salvador, a editoria de esportes não poupava elogios, longe de saber que as matérias perfeitas, usando convenientemente o jargão esportivo, eram feitas contando, como sempre, com o apoio dos colegas que, solidários, poupavam a minha ida ao estádio.

No país do futebol como o nosso, impensável tanta ignorância sobre o tema.  Mas a verdade é que, naquela época, uma mulher no campo de futebol ainda mais como profissional, era uma novidade, principalmente se levarmos em conta que eu era a única a fazer incursões no jornalismo profissional na nossa cidade.

Curiosamente, me sobressaía na cobertura policial, muito mais barra pesada e até então restrita aos homens, mas não conseguia me adaptar à cobertura esportiva. Nem eu mesma entendo.

Hoje, sou flamenguista para seguir o meu filho que é um torcedor apaixonado do Flamengo. Aprendi com ele a tomar gosto pelo time. Afora os jogos do Mengão só assisto a Seleção Brasileira em dias de competições decisivas. Mas estou aprendendo e gostando de futebol. Uma vitória.

Dia desses, assisti na televisão uma longa reportagem em que um grupo de mulheres reivindicava o direito de ir ao estádio em segurança. Muitas delas afirmaram que amam futebol, mas ultimamente evitavam frequentar estádios, com receio de assédio e da violência em campo, sobretudo entre as torcidas. Mas essa é uma outra conversa. Vai ficar para outra oportunidade.

Socorro Pitombo é jornalista

Texto publicado originalmente no Blog da Feira