quarta-feira, 23 de setembro de 2020

DÊ UMA OLHADA SEM COMPROMISSO, FREGUÊS...

 

Alana Freitas El Fahl 




“Minha terra não é moça, minha terra é menino, que atira badogue, que mata mocó, que arma arapuca e sabe aboiar.” (Eurico Alves Boaventura)

“A carreta de Oscar grande como a rua, Cine Íris e a certeza de ter nascido antes.” (Iderval Miranda)

“Você pode, em Feira, recitar versos logo de manhã e não parecer pedante. Você diz: parem de jogar cadáveres na minha porta." (Ederval Fernandes)

Costumo dizer que sou feirense de umbigo enterrado, expressão popular baseada na tradição de enterrar o umbigo da criança no local onde nasce, simbolizando sua pertença eterna com aquele pedaço de chão. O meu foi enterrado no bairro da Mangabeira (ainda zona rural naquele março de 1975) onde morávamos em uma chácara, misto de casa e comércio de meu pai. Nasci nessa casa de parto normal pelas mãos da parteira Mãe Maria e da enfermeira Maria Augusta e meu umbigo foi enterrado no curral onde é hoje é um condomínio. Aos dez anos fui morar na Rua Edelvira de Oliveira, uma rua muito movimentada entre a Av. Maria Quitéria e João Durval e ali fiquei até me casar em 2005 e vir morar no SIM, bem antes do que o bairro ser o que é hoje.

Nascida e criada nessa terra me sinto uma tabaroa de Feira com todo orgulho e gosto de reafirmar essa filiação por outras terras por onde vou, sempre com a passagem de volta marcada. Como boa feirense, tenho o hábito/costume ou até vício de “bater perna na rua”, como os franceses dizem, sou uma flaneur. Para quem não é baiano, ir à rua significa ir ao centro da cidade, parte viva e pulsante de toda urbe. O motivo pouco importa, desde a compra prosaica de um presente até a resolução de um problema burocrático, o prazer é andar pelo centro vendo as novidades, parando em carrinhos de frutas, comendo amendoim ou milho assado, apreciando o corre-corre das pessoas, ouvindo retalhos de conversa e imaginando suas histórias de vida, escolhendo bugigangas que à primeira vista parecem essenciais.

Gosto disso desde criança. Pela mão de minha mãe, íamos comprar tecido na Violeta, aviamentos no Armarinho Marta, pão na Padaria da Fé, café e fubá no Tabajara, bijuterias em Zé do Fusca. Recordo do encantamento quando entrei pela primeira vez nas Lojas Brasileiras, meu primeiro Shopping, com aquele mundo de doces a granel, ou o frio na barriga ao subir as escadas rolantes das Pernambucanas. Quando era necessário íamos sacar algum dinheiro na ASPEB, da poupança que minha fazia com os seus caixas e trocos de feira, e íamos comprar roupas na Sheila ou sapatos na Bezerra e Santana sempre no Natal ou São João, essa última muito chic, fazia sorteios de pipocar a bola, uma vez ganhei uma Sandália Karatê.  Quando não tínhamos a carona de meu pai, íamos no ônibus da Autossel. O ápice desses bordejos era merendar um coco espumante no Predileto ou o coroamento de um almoço no Boiadeiro. E essa redondeza era toda beleza, havia ali no início da Sales Barbosa um pipoqueiro e um freezer da Kibon, além de um jardim com bancos para tomar nosso sorvete confortavelmente.

Eu estudei no primário no Colégio Dalle Nogare, do hoje meu amigo e colega de UEFS Humberto Oliveira, que funcionava em um sobrado em frente à Praça do Nordestino, bem no burburinho do centro, então comecei a dar minhas escapulidas para ver a rua bem criança, descobri ali pertinho uma banca de revistas, Sadel, nome em razão de funcionar no passeio dessa loja, ainda hoje de pé, e uma loja de discos,  a Só Discos, volta e meia eu corria lá rapidinho na hora da saída. Ainda lembro-me de uns móveis de bonecas, miniaturas de uma mobília, que eram vendidos na esquina da Marechal com a praça da Bandeira, no passeio onde funcionava o Banco Bamerindus (O tempo passa, o tempo voa), tão lindas que ainda guardo nas gavetas da memória o cheiro de madeira daquela minha primeira casinha.

Já adolescente, de “cangote grosso e ferrado limpo” como dizia minha vó Lili, comecei a ir para rua sozinha e não parei mais. Eu me transformei em uma espécie de “quebra-faca” da família, tudo que era preciso fazer na rua, “manda Alana que ela gosta”, “manda Alana que ela sabe achar”, cargo que ainda ocupo na medida do possível da vida adulta. Recordo-me da  alegria de minhas compras do material escolar na Nossa Papelaria ou na Livraria Dom Pedro, do simpaticíssimo Sr. Amadeu do Banco do Brasil, que recebia pessoalmente seus clientes, levava na porta e chamava o táxi se fosse preciso. A Ottan Center e CF Carvalho Magazine  era tão lindas,  lojas de departamentos by Princesa do Sertão, com suas sessões diversificadas e vendedoras muito elegantes. E havia o Íris e o Timbira onde aprendi a amar o cinema nas matinês com gosto de Mentex e bala Kids. Depois descobri a Galeria Carmac que tinha uma lanchonete maravilhosa na esquina e quando veio a Luciana Center, o Arnold Silva e o Pedro Falcão foi a glória, até hoje quando passo por eles não resisto a cruzá-los, o máximo em matéria de cortar caminho vendo vitrine bonita no percurso. O Pedro virou Drogasil, nesse processo bizarro de farmacificação de nossa terra.

Dessa fase, final dos anos 80 comecinho dos 90, também guardo boas lembranças dos domingos. Eu e minha turma do Colégio Nobre com nosso cabelos de Chitãozinho e Chororó e calças bag, de tardinha íamos para a Gelateria Italiana, ali ao lado do Colégio São Francisco, hoje Safra. O legal era tomar sorvete e depois ficar na porta resenhando e paquerando, às vezes atravessávamos a rua para um sanduíche no Gauchão que ficava ali no meio ou para comer uma fatia de pizza na lanchonete do Malibu Shopping, hoje Shopping das Fábricas. Enfim, o verbo dos domingos era “Getuliar” e quando era perto da Micareta então, rolava por ali o que se chamava de Grito de Micareta e na Micareta mesmo existia a rivalidade dos bailes Tênis x Cajueiro, um mais popular, um mais elitizado. E em setembro era a Expofeira que agitava nossa cidade, botar bota e muita banca de fazendeiro sem nunca ter sido e ir para o Parque de Exposição era o máximo, quem não lembra do locutor de voz empostada: Fazendas Bahia, Fazendas Pau da Rola…

A menina cresceu, ficou sabendo que passou no vestibular para Letras pela Rádio Antares e pelo jornal Feira Hoje, virou professora, virou esposa de um comerciante, filho de árabes que por aqui chegaram e ficaram como muitos outros imigrantes que nossa terra acolhe, virou mãe de Miguel, mas ainda guarda essa menina que um dia se perdeu no centro da cidade e foi localizada numa barraquinha de doces na porta da Violeta batendo altos papos com os fregueses e não entendeu o desespero de seu pai e um monte de gente que a procurava, ela só estava dando umas voltas…

Praticamente de tudo que falei aqui pouca coisa resta de concreto nessa Feira de hoje, mas ainda quando vou para rua (um dos meus piores martírios do isolamento social, há quase seis meses sem uma incursão na Sales Barbosa) essas memórias me invadem junto com aquele cheiro de coco queimado com rapadura que era vendido ali na Bernardino Bahia ou do gosto do sorvete da Princesinha, das seriguelas da Festa da Kalilândia e da maçã do amor da Festa da Matriz onde passei muito mal um dia por medo de Monga.  Dentro de uma cidade cabem muitas cidades e dentro de nossas memórias cabem muitos mundos, não vejo a hora de ouvir de novo Chip Tim, Oi, Claro, Vivo, Cartão, Senhora?, Dentista?, Empréstimo?, Capinha, película? Olha a “Acelora”… Essa é a minha Feira e sei que cada um tem a sua…Eurico Alves, Godofredo Filho, Joaquim Gouveia, Hugo Navarro, Iderval Miranda, Ederval Fernandes, Beto Pitombo, Carlos Pita, Zé Coió, Raymundo Luiz, Adilson Simas, Zé Maria, Antônio de Josino, Clovis Ramaiana, Augusto Spínola, Jânio Rego, Cintia Portugal, e você de umbigo enterrado ou não…

Alana Freitas El Fahl é Professora Titular de Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana e tabaroa de Feira de Santana com umbigo enterrado com muito orgulho!

Fotos: Grupo Memórias e Histórias de Feira de Santana

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

AMIZADE É SENTIMENTO

 

Foto: Leila Cruz

Você também acredita nisso? Que amizade é sentimento? Pois é. O tempo pode passar, as coisas podem mudar, mas a amizade, quando é verdadeira, permanece ali, intacta. Amizade não tem a ver com intensidade, com presença, tem a ver com o que você sente. Não é por acaso que, muitas vezes, você acaba de conhecer uma pessoa e tem a certeza de que aquele vínculo será para sempre. Isso é amizade. Quantos amigos não se falam há um tempão, nem pelas redes sociais digitais, mas, quando se encontram, é como se aquele intervalo não tivesse passado de um segundo? Isso é amizade. Ela se caracteriza por uma mão que é dada e que não está visível aos olhos, mas está ali. "Vamos de mãos dadas", como diz o poeta. E todas as vezes que essa mão precisa se tornar visível, ela  o fará. Isso é amizade.

Preservar esse sentimento é um desafio que vale muito a pena, porque amizade não é um produto que se encontra por aí, pronto para ser comprado por quem tem mais dinheiro, é mais seguido ou aparece na televisão. Não. Amizade está acima dessas coisas pequenas. Amizade é algo grandioso. Por isso, todo esforço para preservá-la nunca é em vão. Vale discutir, brigar, reconhecer, perdoar. Vale tudo por uma boa amizade. Tudo mesmo. Vale agradar, mostrar a importância que o amigo e a amiga têm na nossa vida, mostrar-se disposto ou disposta a ajudar, ser "colo de mãe" quando for necessário. Isso tudo é importante e faz crescer. Isso tudo é amizade.

É claro que nos caminhos da vida a gente se depara com uma decepção ou outra, que é cruel, que machuca bastante. Nesse sentido, fico sempre a me perguntar: quando a gente se decepciona com um amigo ou amiga, o sentimento de amizade era entendido da mesma forma por quem fazia parte daquela relação? Porque, é claro, nós somos falhos, erramos, não somos perfeitos. Contudo, numa relação de amizade honesta, todas as imperfeições são sabidas e até bem-vindas, porque são elas também que fazem o vínculo ir adiante e se perpetuar. Ainda não tenho resposta para a pergunta que fiz, mas tendo a achar que a mão que decidiu se soltar nunca esteve junta, grudada. 

Amizade é sentimento. Nenhuma distância é capaz de abalar uma amizade, quando ela é verdadeira. Amizade é sentir o outro, mesmo que distante. É querer sempre bem e acolher sempre que houver necessidade. Amizade é amor sem limites, sem barreiras e sem tempo. Amizade é sentimento.

Raulino Júnior é compositor, professor, especialista em Estudos Linguísticos, jornalista, produtor cultural e mestre em Educação e Contemporaneidade

domingo, 20 de setembro de 2020

A CAPACIDADE DE MUDAR SEM PERDER A ESSÊNCIA

Jornalistas Lineia Fernandes (aniversariante deste domingo) e Madalena de Jesus

Ela é especial. Isso é fato. Perfeccionista sem ser chata, é daquelas pessoas que se esmera em tudo que faz. Amiga para qualquer situação, seja cobrir uma ausência no trabalho ou garantir uma carona a qualquer hora, seja para onde for. Sempre tem um gesto de carinho, expresso por meio de apelidos que às vezes reduz o nome a apenas uma sílaba ou estende ao máximo, com a marca do diminutivo. Certamente fruto de sua estreita e intensa relação com os familiares, que vem dos pais, passa pelos irmãos e chega nos amados sobrinhos Gabriel, Felipe, Duda e Teo. 

Lineia da Silva Souza de nascimento, virou Lineia Fernandes – o outro sobrenome do pai –  e assim ficou conhecida por essa Feira de Santana enorme e fora daqui também. Anda sempre elegante e exibe um estilo bem peculiar, dos cabelos às roupas e sapatos. Tudo sempre com a marca do bom gosto que a acompanha. O cuidado com o visual vale também para o trabalho. E é na atividade jornalística que ela supera todos os limites da competência e da seriedade.

Uma das características mais admiráveis da eternamente loura, mesmo quando os cabelos estão castanhos, é a capacidade de mudar, sem nunca perder a essência. E, para completar, tem um ritmo próprio de fazer as coisas, sem medo de arriscar. Se não der certo, aproveita a parte boa (sempre tem) e segue em frente, sem atalhos, sem pressa. Se ela tem defeitos? Claro que sim, mas as qualidades são infinitamente mais significativas. Tanto que ela pode marcar um encontro às 10h e chegar às 16h bem tranquila que ninguém liga. A sua presença é o mais importante.

Mesmo dona de um espírito festeiro, Li é seletiva até quando o assunto é entretenimento. Ama os grandes eventos culturais, especialmente shows musicais e espetáculos teatrais, mas não abre mão de reuniões com pequenos grupos. As meninas da Casa de Neiroca que o digam! Costuma usar seu texto impecável e extremamente criativo para prestar belas homenagens às pessoas queridas, com o mesmo primor com que elabora suas matérias, colocando doses generosas de respeito à nossa mais elementar matéria prima, que é a informação. E como ela cria textos belíssimos! 

Até quem escreve fácil queima as pestanas tentando traduzir em palavras os contrastes da personalidade dessa mulher incrível, que faz da vida o caminho para a liberdade plena, com uma firmeza invejável, sem perder a ternura, jamais. Ensinando que é possível, sim, levantar a bandeira da igualdade social, usar a comunicação a serviço da educação – e vice-versa – com leveza e alegria. Sempre! E para completar essa vasta lista de atributos, falta talvez o que mais traduz a sua personalidade. 

Lineia é pura inspiração!

Madalena de Jesus, com o aval (e a inspiração) das jornalistas que compõem o grupo Casa de Neiroca.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

FEIRA DE SANTANA E AS DOCES LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA


                                     Socorro Pitombo                                                                                              

O dia de segunda-feira em nossa casa era bem movimentado. Logo cedo, chegava o meu tio Antônio – Tonho para os mais chegados – irmão da minha mãe. Fazendeiro e pecuarista no vizinho município de Tanquinho, vinha fechar negócio no Campo do Gado, ainda hoje importante entreposto comercial de pecuária em Feira de Santana.

Tio Tonho usava terno de brim cor cáqui, bem engomado, chapéu sombreando o rosto já curtido pelo sol do sertão, um perfeito tabaréu, no bom sentido da palavra.  Quanto mais o terno de brim engomado, mais dinheiro no bolso do fazendeiro abastado! O fato é que ele vinha, invariavelmente, acompanhado da minha tia e primas. Elas com o objetivo de fazer compras no já afamado comércio da cidade.  

Na feira livre da segunda-feira, a variedade de produtos se comparava à variedade de tipos humanos que se apinhava no entorno das praças principais. Eram mulatos e negros fortes, com seus chapéus de palha de aba larga, a proteger do sol inclemente; ou chapéu de couro bem característico do sertanejo. E o comércio fervilhava, comércio bom mesmo, que atraía as gentes das cidades vizinhas, que aqui compareciam semanalmente para as compras.

Morávamos, então, na rua Direita, hoje Conselheiro Franco. O movimento começava cedo, era um dia diferente! Eu ainda garota, escapulia com as amigas para visitar as barracas, onde comprávamos panelinhas de barro – o dinheiro, tio Tonho garantia -, para brincar de cozido nos frondosos quintais das antigas residências. Brincávamos também de teatro, de cantoras do rádio, e de tantas outras fantasias que a nossa imaginação pudesse alcançar. Eram dias felizes, aqueles da infância!

Quando a noite caía, depois do jantar, as brincadeiras continuavam reunindo a criançada da vizinhança. Cantávamos em círculo, brincando de roda, tirando versos ou então de chicotinho queimado, cabra cega… Como não passava carro, um luxo naquela época, a rua era o limite, até o momento em que chegava a hora de nos recolher, o que fazíamos a contragosto.

Aos domingos, sempre à tarde, era dia de visitar as nossas madrinhas. Desde cedo os preparativos para o passeio. O banho mais demorado, os melhores vestidos, os laços de fita nos cabelos. E lá íamos nós, eu e minhas irmãs. As visitas dominicais esperadas com entusiasmo, pois rendiam guloseimas e presentinhos.

 Íamos com Valtino, um faz tudo lá de casa desde que me entendia por gente.  No quintal, ele cantava como se estivesse num palco. Os trejeitos sinalizavam o que só muito mais tarde iriamos perceber. Mas lá um dia, Valtino cismou que iria para São Paulo, não teve quem o segurasse. E lá se foi deixando saudade, nunca mais soubemos o seu paradeiro. 

São recordações da infância, que me veem à memória nesse dia tão especial para nós, feirenses, quando se comemora os 187 anos de emancipação política de Feira de Santana. Lembranças boas, saudade de um tempo que ficou perdido. Onde mesmo…?  Diz a escritora Adélia Prado, que “a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos”. Sábias palavras.

 E me ponho a lembrar das festas de antigamente. Os vestidos bordados e tão bem caprichados. A saudação à padroeira, em sua passagem pelas ruas em procissão até o largo da matriz. O Bando Anunciador, com os zabumbas animando os nossos domingos. A Micareta de então, com o desfile dos carros alegóricos a enfeitar as ruas centrais. No Feira Tênis Clube, a Noite no Havaí antecedia a festa e reunia beldades, mostrando a graça e a beleza da mulher feirense. Tempos bons da minha meninice e da mocidade, tempos idos.

Havia também os aguadeiros. Rapazes que vendiam água. Em dias de festa, usavam calças brancas e camisas coloridas, laçarote de papel de seda a enfeitar o chapéu de palha, como nos conta o poeta feirense, Eurico Alves Boaventura. Montados em jumentos também engalanados, os rapazes levavam água nos barris para a lavagem da igreja, ritual que fazia parte dos festejos em louvor a Senhora Santana.  Daí a expressão tão bem conhecida, “mais enfeitado do que jegue em dia de lavagem”, quando se quer descrever uma pessoa com muitos adereços.

  E assim era a Feira de Santana de outrora. Terra formosa, cheia de graça infinita… como vai nos lembrar Georgina Erismann.  Hoje, uma cidade que cresce desordenada e encantadoramente provinciana, como menina faceira, embora com seus 187 anos.

Parabéns Feira de Santana, cidade que só nos traz orgulho e tão acertadamente chamada Princesa do Sertão.

Socorro Pitombo, jornalista

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O DONO DA ESQUINA


O adeus de Zequinha nos golpeou feito tabefe, estalado, seco e repentino, em plena sexta-feira, dia emblemático para os amantes da cerveja gelada e da sua inconfundível e saborosa picanha.

Ora, não me venha falar em acaso! Se é para recordá-lo que seja inevitavelmente pela magia de uma típica sexta-feira! Ansiosa, plural, pretensiosa...

Quem de nós saberia quando e como começou esta nossa insaciável sede pelo dia mais esperado da semana?! Que merda de domingo quê, responderia nosso querido Zequinha, tomado por seu irrefreável mau humor que acabava por nos contagiar. Tão importante e necessária que se tornou verbo: sextou!, gritam hoje em dia.

Frases curtas, presença forte sorriso quase sempre discreto e uma obstinada capacidade de reconhecer as pessoas da sua cidade: os jornalistas, os publicitários, os políticos, os fazendeiros e empresários, os desocupados, os vendedores de bugigangas, os desfrutáveis, os malas, as famílias, os malucos (em geral, aqueles no estágio de ainda não jogar pedra)... Todos se reuniam lá por motivos variados, quase nunca aleatórios, a bem da verdade!

Num primeiro momento, atraídos pela melhor picanha da cidade, ao ponto, suculenta, sabor inesquecível! Nem sempre tão suficientemente generosa como gostaríamos, pois era fácil nos deixar com aquele gostinho de “quero mais!” A cerveja também sempre foi convidativa, da boa, bem gelada, nunca como daqueles bares preguiçosos que, em pleno dia de final de campeonato, chega a sua mesa quente e sem graça, destoando da sexta-feira.

Dediquemos algumas poucas linhas aos acompanhamentos - tropeiro com torresmos e farofa deliciosos, salada fresquinha. O pão de alho e o queijo na brasa... Huuuummm!

Não há aquele som insuportável, que agride os ouvidos. O boteco-restaurante existe para cultivar a boa conversa, um bom dedo de prosa! Quantas paqueras, romances e affaires vingaram naquelas mesas! Quantos negócios fechados e juras de amor trocados. Não mais um simples bar, uma mera esquina, Zequinha já era reduto. Como se não bastasse, era amigo! Vai seguir levando consigo segredos de muita gente importante da cidade.

E nem todos sabiam, mas o cara ainda escondia um coração generoso. Bom filho, amoroso irmão, dedicou sua vida ao trabalho, ofício herdado do pai. O bar era sua vida! Estava lá todos os dias.

Se por um lado tentava guardar sua eloquência, vez por outra, enchia nossas tardes-noites com seus comentários recheados de sagacidade e ironia! Só as pessoas de uma astuta inteligência o conseguem - desprovidas de pretensão e vaidades, do alto do seu singular poder de observação, escondidas naquela aparente distração.

Não ouviu?! Ficou sem entender?! Problema seu. Teria que frequentar a esquina mais boêmia da cidade mais vezes para compreender aquela dinâmica só dele!

Nós, os jornalistas, já cultivamos uma nostálgica paixão pelos bares boêmios. Tratamos de relaxar, trocar alguma incontida ideia - antes presa nas entrelinhas do impresso, hoje restrita ao apressado e caótico mundo das redes sociais. Não é fácil!

Não fosse motivo suficiente, nutrimos pelo Ponto do Zequinha um carinho a mais porque o antigo Bloco Zero Hora e seu sucessor, o Filhos da Pauta, se concentraram lá nos últimos anos. A sensação de pertencimento que nutrimos por certos lugares. Recordações de quando a Micareta era mais contagiante e, numa única noite, nos reuníamos em torno do propósito ir à forra em plena festa momesca. Tinha tudo a ver com ele!

Bom, meu caro leitor, se você está aguardando nestas linhas finais um outro desfecho, lembre-se que é mais aprazível não se despedir totalmente de caras como Zequinha. Vamos ficar para sempre com suas pitadas mal-humoradas que não faziam mal a ninguém. Vamos vibrar por ele a cada sexta-feira e desejar sua picanha saborosa cada vez que pensarmos numa boa comida. Aiii, dá água na boca só de lembrar!

Você nos deixará sempre com saudades, mestre churrasqueiro! Vá com Deus!

Lineia Fernandes, jornalista

sábado, 12 de setembro de 2020

UMA SEXTA-FEIRA A MENOS



Ainda sem me refazer do susto com a notícia da morte súbita de Zequinha, que criou um ponto de encontro para pessoas com os mais diversos perfis, pensei em escrever sobre a sua relação com os jornalistas dessa Feira de Santana. Por alguns instantes desejei que a informação fosse fake e percorri vários grupos de whatsapp com a indagação, sempre com respostas afirmativas, que logo em seguida estariam também nos sites e blogs da cidade. Ainda buscava na memória momentos da concentração do Zero Hora e do Filhos da Pauta quando encontrei esse belíssimo texto de Armando Sampaio (como ele escreve bem!). Entendi que eu não precisava dizer mais nada. (Madalena de Jesus)

Hoje não sextou! 

Esse dia é marcado há anos por um compromisso atado na amizade, na leveza do convívio fraterno, no amaciar os solavancos da vida ocorridos durante a semana. A partir do meio da tarde até quando o corpo resistia ou a vontade era saciada, estávamos no templo dos amigos, jogando conversa no passeio semi protegidos, seja do sereno, do frio, da chuva ou qualquer outra intempérie. 

Aqui é nosso reduto, todos são boêmios, mesmo sendo médicos, professores, pastores, comerciantes, estudantes, ranzinzas, boas praças, íntegros ou respeitosamente mentirosos. Com maestria, com facas e espetos nas mãos o Mestre da carne, piloto das brasas, regulador dos exaltados, estava dando as cartas, as broncas com seu riso disfarçado, para sugerir uma brabeza que era só aparência. 

O maestro retirou-se da cena! Não haverá aglomeração, tumulto, eco de soluços ou o correr de algumas lágrimas. 

Zeca foi sem escolher a hora, não despediu dos amigos. Esse ano de tantas extravagâncias teve uma sexta-feira a menos.

Armando Sampaio é empresário.