domingo, 21 de agosto de 2016

RECORTES DE MEMÓRIA




(Para Amílcar de Jesus, meu pai)


Se alguém me perguntar a razão, certamente não saberei responder. Mas sempre que eu penso em meu pai, o que é muito mais frequente do qualquer pessoa possa imaginar, a primeira imagem que surge é a de seus braços fortes, uma espécie de compensação da anatomia pela sua condição de paralítico. “Aleijado, sim; inválido, jamais”, dizia seo Zinho, que nunca se entregou às sequelas irreversíveis da paralisia infantil.

Braços fortes, “pegando no pesado”, até porque as coisas nunca foram fáceis em sua vida. Para roçar o mato, cuidar da terra, segurar as rédeas – do cavalo e da vida – e abraçar. As mãos, calejadas pelo cabo da enxada cega que limpa a roça e escava o tanque, pelo cabo do facão amolado que corta o capim e abre o coco verde e pela pedra que parte o ouricuri, machuca o milho seco, alimento das galinhas.

Sempre atento a tudo à sua volta, os olhos voltados para a leitura, dos livros e do mundo, e para as dores, do corpo e da alma. Com a mesma voz firme que ordena e aconselha, pede: comida na hora certa, carinho de quem ama e atenção de todos. Tudo isso coroado com um sorriso, às vezes maroto, outras irônico ou ainda impregnado de significados não identificados e nem sempre explicados.

As suas pernas sem movimento, quietas sobre a cadeira de rodas ou sobre o cavalo, seu condutor de toda a vida, são as marcas visíveis da perda infantil e da dor adulta. Os seus pés não vão a lugar algum, são as raízes do corpo. Mas que ironia! Ele percorre o mundo fazendo do saber o combustível e transformando os livros em condutores dessa viagem para conhecer as mais variadas culturas.

E foi assim, desafiando o destino e construindo a própria história, que ele passou oito décadas e mais três anos fazendo da vida um punhado de versos nunca declamados, um emaranhado de sonhos – realizados ou não – ligando este a tantos outros mundos. Reais, como a morte.

Madalena de Jesus

domingo, 14 de agosto de 2016

RÉQUIEM E INCELENÇAS PARA LENI DAVID



Essa semana nos deixou uma mulher muito especial, Maria Lenilda Carneiro Santos David, Lene ou Leni para os seus afetos. Todos que tiveram a sorte de conhecê-la reconhecerão nessas minhas palavras as suas singularidades.

A UEFS me deu muito ao longo desses 23 anos entre aluna e professora, mas dentre o melhor que recebi estão as muitas pessoas especiais que cruzaram meu caminho e tocaram minha vida. Leni é uma delas... Nos conhecemos no começo dos anos 2000. Eu, a jovem professora substituta cheia de sonhos a conquistar, ela a experiente professora aposentada que voltava da França para sua amada Feira como Professora convidada. Nos tornamos amigas de infância no primeiro dia que nos conhecemos, aquela empatia inexplicável que quem já sentiu sabe do que estou falando. Ela era pura emoção, história e memória em forma de gente. Uma exímia narradora, cheia de causos para contar.

Sua vida já era um grande livro. Sertaneja com raízes fincadas, filha de uma família tradicional de nossa cidade. Ganhou a França e se reinventou, foi fazer mestrado na Europa, quando por aqui um diploma ainda era para poucos. Lá encontrou um amor de folhetim, Monsieur Denid, um verdadeiro Chevalier francês, o seu Dêdê, sempre amoroso e paciente com os sonhos de sua amada. Mas era preciso voltar, Feira era seu norte, sua terra encantada. Como nos versos de Raul Seixas que sempre brincávamos, "a gente pode ser feliz em Feira de Santana ou em Paris". Mãe leoa de suas três meninas, vó com açúcar (Mami), filha e irmã devotada. Ela gostava de contar do seu nome, união de Leonel e Hilda, costume bem nordestino, puro amor já de nascença!

Ela irradiava entusiasmo, onde estava juntava gente para ouvir suas tramas. Dentre elas lembro especialmente da Rainha da Primavera, publicado no seu blog Baú da Princesa, uma linda história que tem sua irmã Iara como protagonista. Boemia, farrista, amiga da boa mesa e do bom copo, adorava receber os amigos para prosear. Conhecia muito de música e se deleitava com seu repertório variado, de Waldick Soriano a Gipsy Kings, de Gilberto Gil a Azsnavour, de Quixabeira a Beethoven (nome de seu cachorro).

Aliás, essa mistura cultural era sua marca, a batizei de franco-feirense, só porque feirense na frente não ornava ... Leni do Foie gras e do Redenho de carneiro, Leni do Champs e da Rua Direita, Leni de Balzac e das frases de caminhão, Leni da ópera e do samba (sambava que só!), Leni das coleções de livros, de sapos e de bonecas. Além de intelectual, pesquisadora das imagens da baiana na literatura, da presença da MPB na literatura, tinha talentos inimagináveis. Cozinheira, costureira, bordadeira, pintora de parede, fotógrafa e muito mais.

E um dos seus talentos especiais era ser amiga, trazia sua fé em Nossa Senhora Santana para nossos momentos de dor, sempre nos animando e chamando para a poesia da vida. Sabia ver poesia em tudo, mas também era boa de briga, garantia suas verdades sem medo de enfrentamentos. Xingava com uma graça que só ela.

Queria te agradecer por muito que me ensinou e me deu. Em 2006, quando minha filha recém-nascida morreu, ela me ajudou cotidianamente a sair do luto, me chamando para trabalhar com ela num concurso de redação entre outros motivos para viver de novo. E num almoço inesquecível em sua casa, um almoço francês completo daquele que duram horas, até cachaça da Segunda Guerra tomamos, consegui rir de novo e sair da zona cinzenta em que estava.

Amiga, como nos versos do seu grande amigo Antonio Brasileiro, um dia seremos todos memórias, você deixou muitas entre nós... Vá alegrar os anjos com seus causos.... Para você um Réquiem porque foi européia e incelenças porque era uma sertaneja arretada de boa!

Alana Freitas, professora

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

ELAS SÃO AS MENINAS DA NOTRE



Quando eu pensei em escrever sobre elas, logo vieram as dúvidas: Sobre quem eu falaria primeiro? Quais os critérios para definir a ordem de apresentação? Sim, porque isso aqui não será exatamente um perfil, até porque esse tipo de texto ela, Beatriz Ferreira, faz com maestria! Agora que já citei uma, tenho que falar de Eveline Cordeiro, a outra metade dessa dupla dinâmica que ganhou de Reginaldo Pereira Tracajá o sugestivo apelido de “As meninas da Notre”.

Que elas são especiais, não há a menor dúvida. Aliás, há consenso (quase) geral a esse respeito. Mas o fato é que desde os tempos de estágio lá na redação do Jornal Folha do Estado eu as acompanho. Nunca uma ou outra, sempre ambas. E o que mais me chamava a atenção era a capacidade que elas tinham de estar sempre à frente do programado e até mesmo do esperado. Sabe aquele algo mais que faz a diferença? As duas tinham.

Beatriz sempre procurou se aproximar mais de mim. Talvez alguma instância superior tenha providenciado isso, porque ela nasceu exatamente na mesma data que a minha única filha, Hana Bárbara. Mesmo eu sendo editora de política, que não era a área dela – olha a ironia do destino e as voltas que a vida dá! – sempre trocávamos ideias. Eu sempre dava um jeito de amenizar os esbregues de “Seo Dimas”, então o chefe de redação. E Eveline lá, quietinha, na dela.

Não demorou muito para a redação ficar pequena. Quando concluíram o curso, as meninas mostraram que não estavam para brincadeira e decidiram investir tudo em um projeto ousado: Talento, coragem e dinheiro – dos pais, claro. E assim nasceu a Notre Comunicação, empresa que cresceu por mérito delas, isso ninguém pode negar. E elas cresceram juntas, estão aí no mercado, com assessoria e consultoria, com destaque para a atuação na área política.

Obviamente não citarei as campanhas políticas já realizadas, as empresas assessoradas, os eventos organizados, as matérias elaboradas (muito bem, por sinal). Tudo com o carimbo do talento, da capacidade e da responsabilidade profissional. Hoje os papeis estão um tanto invertidos e eu aprendo muito mais com elas do que o inverso. Me dá um orgulho danado saber que de um pouquinho do que compartilhamos tempos atrás houve uma transformação fantástica e agora me devolvem em forma de contratos para trabalhos esporádicos. Pois é, eu presto serviço à Notre!

Tudo isso é uma tentativa de dimensionar o carinho e a admiração que eu tenho por estas meninas que, pela idade, poderiam ser minhas filhas. Confesso que me sinto meio mãe às vezes. Não por ser mais velha ou mais experiente, porque essas condições desaparecem quando nos igualamos na relação de trabalho. Mas pela constatação de que o caminho que eu já percorri tantos quilômetros elas estão apenas iniciando e que a jornada vai muito além de Feira de Santana. Ou de Barreiras.

Madalena de Jesus

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

É INTERNACIONAL, MAS NÃO DESGRUDA DAS ORIGENS



Ele é meu irmão. E ninguém pode duvidar desse parentesco porque Jesus também está em seu nome de batismo. É bem verdade que adotou outro sobrenome quando começou a ganhar espaço na imprensa, mas nunca abriu mão do original. “E eu sou doido”? diz o diagramador – um dos melhores que conheci, antes do advento da editoração eletrônica – que percorreu os caminhos do Rotaract e rodou o mundo, já com o nome completo: Valter de Jesus Xéu.

Vivemos um número incontável de histórias por essa Bahia de meu Deus, ao lado de personagens que, mesmo já tendo passado para o plano espiritual, continuam fazendo parte de nossa vida. “Cida!”, grita ele, para se certificar que nossa amiga e igualmente irmã teria a citação merecida. Com ela, conhecemos o melhor lado deste mundo tão cheio de lados ruins. Porque sempre enxergava o lado bom de todas as coisas, de todas as pessoas, de todos os lugares. “Ah, e Egberto?”, questiona.

Certo dia, uma manhã de domingo, estávamos tomando café com cuscuz e carne de charque em minha casa e ele sai com esta pérola: “Estive com Cida ontem, conversamos um tempão e eu dei o maior esporro naquele mocreia. Quem mandou ela morrer tão cedo?”. Ele tinha ido ao cemitério onde a jornalista mais querida desta e de tantas outras cidades foi sepultada. Na certeza de que o amor verdadeiro pode vencer até as barreiras da morte.

Eu poderia desfilar uma imensa lista de pessoas que passaram pela vida do inquieto Valter Xéu, que hoje vive em Brasília, mas só corta e pinta os cabelos em Feira de Santana – pronto, falei! Principalmente mulheres. Mas vou ater-me a uma, apenas. Elis Regina Machado, que sonhava ser jornalista formada e abriu mão de tudo para viver em Aracaju (SE), onde cursou Comunicação. Ou seja, para aprender a teoria daquilo que já sabia. Como, aliás, acontece com todos os jornalistas provisionados.

A doce Elis se despediu dos amigos precocemente, em um domingo, perto de meio dia. Ou melhor, não houve despedida, porque um acidente brutal, uma semana depois da formatura, ceifou a sua vida de forma abrupta. Mas ela deixou um legado incomensurável: A filha Juliana Tito – a mais velha das meninas de Xéu; depois vieram Cecília e Mariana. Também jornalista, segue as pegadas dos pais e das tias de empréstimo, incluindo Neire Matos e eu. Ah! sim, tem ainda a minha sobrinha cubana Maria Mercedes.

Realmente eu não lembro a origem do nome Xéu, mas isso não tem a menor importância, para quem se tornou conhecido como o Embaixador de Cuba, levando para conhecer a Ilha de Fidel Castro inúmeros jornalistas e políticos. Vale ressaltar que nesta área, a política, ele ocupa posição de destaque, não somente pelo trabalho de assessoria que presta, mas pela relação de amizade que desenvolve com as lideranças desse segmento.

Os filhos são, sem dúvida, a sua melhor parte. Aqueles menininhos mirrados, como diria meu pai, se tornaram grandes homens, na mais pura subjetividade do adjetivo grandeza. Flávio, Eduardo, Leo e Ricardo. Todos Tito, aliás, como as meninas. E eu, do alto da minha posição de “tiazona” – forma carinhosa adotada por Leo, antes de se tornar um grande fotógrafo – vejo surgir uma nova geração de herdeiros de Xéu. Os quatro filhotes já são pais e, posso afirmar, tão bons quanto o agora “vô”.

Pois é, o editor do site Pátria Latina é mesmo internacional. Mas não consegue se desgrudar das origens, especialmente das comidas com gosto de casa de parente do interior e das conversas em volta da mesa. Coisa de quem tem família grande, mesmo que espalhada, como a dele. Mas que pode se juntar em um estalar de dedos (olha o velho Zinho aí de novo!). E a propósito do parentesco, somos nascidos na mesma cidade, Conceição do Jacuípe. Quem sabe...

Madalena de Jesus