sexta-feira, 7 de março de 2014

JÚLIA E OS PORTA-RETRATOS



Talvez Júlia precisasse de um elogio, apenas um. Sentia que os quarenta anos pesavam de forma que até Atlas não poderia suportar tal fardo. Quando olhava para algumas roupas bem escondidas no armário, sentia que muitas fases de sua vida estavam também ali, largadas, acanhadas, esquecidas. Não ousava nem tocá-las, pois os efeitos da nostalgia em quem está solitária só traz uma sensação de que a vida não foi vivida como gostaria que tivesse sido. Seus três filhos eram seus amores, amava seu marido, mas não se acostumava com a ideia de uma vida perfeita. Queria se desequilibrar, errar, receber conselhos e não apenas ser aquela a quem todas as amigas recorrem.

Ela sonhava tanto em ousar! Pintar o cabelo (nunca tinha pintado), fazer uma tatuagem, tinha inveja das amigas que usavam fio dental. Mas o que o mundo acharia? Ela sempre se perguntava.  E se um dia resolvesse fazer as coisas que sempre quis mas que sempre teve medo? Suportaria os olhares de reprovação e desdém? Estaria preparada para enfrentar as opiniões que teimariam em se intrometer em sua vida? Ufa, era muita coisa que só de pensar já faziam-na ter medo da mudança.

Então Cibele apareceu, Ângela a trouxe do Rio de Janeiro. Ângela era tudo que Júlia gostaria de ser, a diferença era que Júlia tinha medo e Ângela tinha a razão. Não sei, mas Cibele causava um sentimento estranho em Júlia.

“Onde estão seus filhos?”

“Na escola, o Miguel ainda detesta ter que fazer dever de casa, acredita?”

“Não mudou nada, falando em mudanças, sua vida continua a mesma, né? Digo, sempre tão certinha”. Júlia achava que aquele comentário tinha um tom de crítica.

“Pois é, e você, como anda? Ainda com uma vida toda desequilibrada?”. Júlia sentiu-se vingada.

“Desequilíbrio... hum, você deveria experimentar!” Todas riram na sala, talvez para simbolizar que estavam participando de um diálogo artificial.

“Ah, desculpe, nem te apresentei. Essa é Cibele, minha amiga de carnavais.” Disse isso com um sorriso que denotava malícia.

“Você tem uma bela casa, e vejo nos vários porta-retratos que você ama muito a ideia “família acima de tudo”.

“Amar a ideia é como amar o desejo em ter o objeto, mas eu amo o objeto e não o desejo”, disse Júlia.

“Querida prima, sei o quanto ama os valores milenares, não a discrimino”, intrometeu-se Ângela.

Júlia até que queria dizer: e quem é você para julgar alguém? Fugiu da casa dos pais para viver com um homem casado! Mas sabia que os erros a seduziam, que o desequilíbrio era como se fosse uma amiga chamando-a para saírem escondido do quarto e encontrar o namoradinho no bar da esquina.

“Já leu Madame Bovary, Júlia?”

“Não, deveria?”

“Não sei se seria uma obrigação, mas entenda essa indicação como alguém que quer te ver entretida.”

“Cibele, já te disse que Madame Bovary não é boa influência, viu o que ela fez em mim?”. As duas riram, Júlia meio desconsertada riu de forma acanhada.

“Querida prima, terei que partir, ah, estou naquela pousada que... você sabe”. Júlia sabia o que significava a pausa. Era a pousada Carpe Diem, aquela em que sua tia, a mãe de Ângela, pegou a filha em uma situação delicada. Não esperava que com dezoito anos sua filha pudesse seduzir um homem bem casado e que não tinha o perfil de coroa babão. Talvez donos de comércio escondam libidos reprimidas pelo teatro da sociedade.

“Ficarão quantos dias nesta monótona cidade?”

“Nem sei, vim a passeio, mas não pense que vim terminar minha história como Tieta”. Todas riram.

“Ai, ai, você não toma jeito”.

Júlia dormiu pensando em Madame Bovary, pensando em Ângela e tentando desvendar Cibele.
Seu marido não percebeu seu desconserto. Ele praticamente nem a percebia como mulher, não sei se pela idade, ou se pela chama do desejo que já não mais existia, talvez uma fagulha, para não dizer que não falei de sexo.

Ela vai ao banheiro, olha-se no espelho e começa a perceber que o que está faltando é alguém que a redescubra, que explore nela aquilo que tanto sonha e deseja de forma ilícita. Ela começa a se tocar, mas segundos depois repudia essa falta de clareza em seus desejos. Não se entende, vive um conflito com seu corpo, alma e existência. Chora, pois estar no mundo para servir à frustração é tão desolador e inquietante como um obeso estar cercado de guloseimas e não poder devorá-las. Ela quer se ver novamente. Ela ousa colocar o batom vermelho que há tempos estava esquecido em sua gaveta, logo após tira-o com as mãos.
“O que está fazendo?” Pergunta-se, mas continua em sua busca por si mesma. Maquia-se vorazmente, está quase deixando a mulher de quarenta para trás. “O que está fazendo?” Pergunta-se novamente. “Seria lindo se seus filhos a vissem assim como uma prostituta.” “O que você deseja?”, não, você não pode! Não pode! “Teria cara para enfrentar sua mãe em datas que são obrigatórias visitas à família?”. Lágrimas sujam seu rosto com a tinta que colocou em seus olhos, queria ver diferente. Lágrimas limpam suas dores, mas será só por uma noite. As angústias morrerão temporariamente. Amanhã elas voltarão.

Deivison Conceição, professor e apaixonado por Literatura.

Um comentário:

  1. Ter um texto publicado no seu blog, para mim , é um grande elogio! Obrigado pela consideração. Devo muito a vc. Abraço.

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