quinta-feira, 22 de junho de 2017

MODA E TRADIÇÃO: A ARTE SECULAR DO BASHOFU


Quimono produzido com tecido bashofu (Foto: Reprodução)


Fibra de bananeira usada na produção do bashofu (Foto: Reprodução)


Tecido do tipo bashofu ganha espaço na moda  (Foto: Reprodução)

Num momento em que estamos prestes a celebrar uma grande tradição, sobretudo, no nordeste brasileiro, o nosso tão festejado São João, talvez seja interessante nos debruçarmos sobre outras formas de tradição para tomar distância e compreender melhor a dinâmica da tradição enquanto tal. Contrariando a ideia de que a moda segue apenas o fluxo que vai do presente para o futuro, reificando valores como a instantaneidade, a efemeridade e a novidade incessante, arriscamos dizer que algumas iniciativas artesanais reforçam o diálogo da moda também com a tradição. Reconhecemos que numa análise mais detalhada seja necessário considerar a distinção entre a roupa e a moda. Ainda assim, acreditamos que mesmo as vestes e as matérias-primas de que são feitas, que não se encontram, necessariamente, no registro cíclico da indústria da moda, e dos ditames das tendências, também podem ser inseridas, de certa forma, no mercado e no circuito da moda. Um desses exemplos é o tecido produzido no Japão, o bashofu, do qual originam-se belíssimos quimonos.

Em recente exposição na Japan House, intitulada Bambu: histórias de um Japão, sob a curadoria de Marcello Dantas, tivemos a oportunidade de contemplar variados objetos produzidos a partir do bambu, esse ingrediente recorrente, que se manifesta de diferentes formas no tecido cultural do país. Curiosamente, também na mesma exposição, uma outra planta nos chamou atenção: assistimos a um vídeo sobre o processo artesanal de produção do bashofu, tecido da fibra da árvore de basho, que é uma bananeira.

Existem registros deste tecido desde o século XIII, e o mesmo era utilizado não apenas por pessoas comuns como uma peça de vestuário de verão, mas pela família real e membros da família da casta samurai. Pelo que pudemos constatar pelo vídeo, o processo de tecelagem representa apenas 1% do processo inteiro, que começa com a plantação e crescimento do basho por vários anos. Depois vem os cortes das folhas, a colheita dos caules da bananeira, a fervura e a divisão das fibras. Na sequência, temos o trabalho de tingimento, tecelagem e acabamento, ressaltando que cada um desses procedimentos é feito à mão e a confecção pode durar até seis meses. Atualmente, o bashofu só é encontrado na região norte da ilha de Okinawa, na vila de Kijoka.

A mestra e artesã Toshiko Taira, reconhecida como Tesouro Nacional Vivo no Japão, é a responsável pela sobrevivência da técnica de produção do bashofu, preservando essa riqueza nacional. O tecido tem como especificidade o frescor, a resistência e o fato de não absorver muitas impurezas como gordura, por exemplo, em sua trama. Os produtores só podem fazer cerca de 250 rolos de bashofu por ano, devido ao tempo necessário para a confecção do mesmo. Um rolo de pano de quimono tem cerca de 12 metros do tecido e, consequentemente, o valor de um quimono tecido de bashofu está aumentando ano a ano, pela raridade e prestígio do feito à mão.

No mundo da moda, estamos assistindo nos últimos anos, como bem observa Ana Mery Sehbe De Carli, dois movimentos antagônicos: o fast fashion, que propõe acelerar o ciclo de vida do produto, injetando novidades no mercado a cada 20, 30 dias; e o slow fashion, um claro movimento de desaceleração, propondo valores mais atemporais para a moda, tais como: marca, tradição, qualidade, laço emocional que envolve afetivamente o consumidor e o bem adquirido.

No slow fashion, efetivamente, vemos a valorização da tradição e, consequentemente, dos processos artesanais. A tradição, comumente concebida como uma prática perpetuada de século para século, mantém relação com os elementos culturais presentes nos costumes, nas artes, nos fazeres, que são legados do passado, e continuam a ser aceitos e atuantes no presente. E esse é bem o caso do tecido bashofu: um saber artesanal que vem sendo perpetuado pelas mãos firmes e delicadas de Toshiko Taira e suas aprendizes. Na dinâmica do slow fashion, há uma valorização do artesão e os produtos têm seu ciclo de vida prolongado, associado ao apreço pelas prendas feitas à mão.

Quando a intenção é reforçar a dimensão da memória e da tradição presentes em alguns tecidos e vestes, como no caso específico do bashofu e dos quimonos produzidos com ele, não há como associá-los, à princípio, ao consumo incessante promovido pela lógica da novidade e da mudança; mas começamos a presenciar um movimento em direção a um consumo mais consciente e afetivo. Nesse sentido, podemos sustentar a ideia de que moda e tradição apenas aparecem como polos opostos quando pensamos o tempo numa curta duração, mas, de fato, elas parecem se encontrar numa longa duração. Assim, existe uma tradição na moda, na medida em que a multiplicação das mudanças solicitará, muito provavelmente, o retorno a certos padrões; bem como há uma moda na tradição, uma vez que esta necessita de formas para se materializar. Esta dinâmica também pode ser atestada na festa junina que, a cada ano, se renova, mas preserva sua ligação com a cultura da vida e dos costumes rurais. Tal perspectiva, talvez, ateste de forma mais evidente a potência dos tecidos, da roupa e da moda para expressar plasticamente certas maneiras de ser, modos de viver e formas de nos relacionarmos com o mundo.

Renata Pitombo Cidreira 
Professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.

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