quarta-feira, 3 de maio de 2017

REMINISCÊNCIAS: E A TERÇA-FEIRA ERA ASSIM



Eu não sei a razão, mas a verdade é que em dias de chuva não é apenas o aconchego de uma cama quentinha que povoa os meus pensamentos. O tempo frio parece destravar um arquivo de lembranças que os afazeres da labuta diária se encarregam de deixar bem escondidas. E esse processo acelera ainda mais se o lugar for propício aos devaneios e o tempo não for demarcado pelo ponteiro do relógio.

Um feriadão daqueles que começa na sexta e vai até o domingo, família reunida na cidade natal, comida saborosa, um filme antigo visto com um novo olhar, conversa animada na copa e a chuva fina que cai sem parar. O cenário da Casa Amarela – aí a saudade aperta – é perfeito para um encontro com a minha memória, onde situações distantes parecem tão reais quanto o momento atual.

As cenas vão passando em ritmo acelerado, mas de vez em quando eu me detenho em algumas delas. Terça-feira, final da tarde, todos ansiosos pelo momento mais esperado do dia – ou melhor, da noite. Mas o tempo passava bem devagar, a noite se instalava trazendo todos os medos possíveis dentro de uma escuridão imensa. E nada. Somos nove ao todo, eu e meus irmãos, e dá muito trabalho nos convencer a ir para a cama.

Já noite alta, meu pai chegava, cansado de um dia que começara ainda na madrugada, quando arrumou as bananas que levaria para a feira de Santa Bárbara. As muletas, companheiras de toda a vida, pesavam ainda mais embaixo dos braços fortes tomados pela fadiga. A comida já na mesa, a bacia com água para lavar as mãos também. E enquanto ele comia o jantar saboroso, mesmo com o mínimo de condimento que restara da semana anterior, minha mãe tentava nos manter no quarto, para não incomodá-lo.

Em uma das saídas dela do quarto, onde eu me aconchegava na quentura do corpo de Dai, eu levantei de um salto e foi impossível me conter. Eu corri para a mesa e, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, eu já estava sobre as pernas sem movimento, saboreando os pedaços de carne de panela que ele sempre deixava para mim, com punhados de farinha que trouxera. E então, a parte mais importante da noite: sentávamos lado a lado para contar a féria do dia.

- Figura com figura, os números do mesmo lado, as notas iguais juntas e sempre o valor do maior para o menor.

Enquanto ele ensinava como arrumar as cédulas retiradas do bolso da camisa suada e igualmente amassada, eu alisava uma por uma, para retirar as marcas do manuseio apressado e sem cuidado algum durante a feira. A essa altura, minha mãe fazia de conta que não estava nos vendo e só retornava da cozinha para trazer água limpa, na mesma bacia, para lavar quatro mãos e não duas como antes, até que a água do banho chegava à temperatura ideal para que ele se lavasse antes de dormir.

Com a inocência natural dos sete anos de idade, eu não entendia direito porque o banho era em uma bacia – não a de lavar as mãos, uma bem maior – e não de pé como nós tomávamos. Mas isso era apenas um detalhe que logo saía do meu pensamento, porque já havia terminado a tarefa e guardado o dinheiro, no mesmo bolso sujo vindo da feira livre. Além disso, o sono já chegara fazia tempo e eu só voltaria a viver tudo isso na semana seguinte. E na outra. E na outra. E na outra...

Madalena de Jesus

Um comentário:

  1. ai, que vontade de chorar... vovô deve ter ensinado a painho essa modalidade de organização das células...
    o meu dia de esperar vovô era no domingo, ele sempre parava perto de minha casa, trazia banana,farinha, às vezes ouricuri ou ovos. muitas vezes, algum dinheiro p comprar lanche durante a semana.

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